RIO ? Ele tem carteira de identidade, certidão de óbito, passaporte e até licença de voo da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Não que precise dessas coisas. A espécie Sporophila beltoni (conhecido popularmente como patativa-tropeira), que se reproduz nos campos de altitude do Sul do Brasil, ganhou status de cidadã brasileira a partir da curiosidade e perseverança do artista catarinense Walmor Corrêa. E, por obra dele, ocupa lugar de destaque na exposição ?Leopoldina, princesa da independência, das artes e das ciências?, em cartaz até março de 2017 no Museu de Arte do Rio ? MAR.
Os documentos fazem parte da instalação ?Sporophila beltoni? (2016). Também integram o trabalho três telas, um mapa com a ocorrência da sporophila no Brasil e um áudio em que o canto do pássaro, mixado, reproduz uma frase musical do Hino Nacional. É um trabalho de pesquisa exaustiva, iniciado em 2014, quando Corrêa ganhou uma bolsa da Fundação Smithsonian. Podia escolher, como local de estudo, qualquer museu ligado à instituição americana.
? Como não tinha nenhum projeto definido quando fui convidado, escolhi o Museu de História Natural de Washington, porque abarcava uma área na qual já tinha interesse. Esse universo me fascina ? conta.
Enquanto se preparava para viajar, o artista soube da classificação, pelos ornitólogos gaúchos Márcio Reppening e Carla Suertegaray Fontana, de uma nova espécie de ave brasileira Eles descobriram que uma sporophila antes identificada como plumbea era na verdade de outra família. Batizaram-na então de beltoni, em homenagem ao ornitólogo americano William Belton, que andara pelo Brasil. O artista se decidiu: iria focar sua pesquisa nas sporophilas brasileiras que pudessem existir na Smithsonian.
A busca começou como uma troca de e-mails, continuou in loco, nos arquivos da instituição, e só terminou quando o artista, depois de várias tentativas frustradas de encontrar sporophilas brasileiras, pediu para checar pessoalmente a coleção de aves taxidermizadas coletadas na América Latina.
Foi no fundo de uma gaveta, numa caixinha branca, que ele encontrou o pássaro: a etiqueta dizia Sporophila plumbea, coletada ?em Curitiba, região dos campos gerais, no Brasil!?. Ao cruzar o número da etiqueta com o dos livros de registro de entrada do pássaro no museu descobriu por que ele não constava: seu nome havia sido grafado errado, como Espermophila. Além disso, se fora encontrado em Curitiba, não poderia ser plumbea (cuja ocorrência é registrada no Cerrado).
ARTISTA ?TRADUZ? SONS DA AVE
É aí que se dá a interseção do passarinho com Leopoldina. Paulo Herkenhoff, Solange Godoy e Luis Carlos Antonelli, curadores da mostra, contextualizaram o período histórico e as transformações provocadas pela chegada da nobre austríaca ao Rio, em 1817. Em sua comitiva vieram artistas e cientistas, entre eles o zoólogo Johann Natterer. Em 18 anos no Brasil, Natterer coletou 12.293 pássaros, enviando-os para o Museu Imperial de Viena. Entre eles, a Sporophila encontrada por Corrêa. Ela chegou a Washington em 1870, numa troca de coleções entre as instituições.
? O museu não sabia que tinha essa espécie em suas coleções. Ela estava numa vala comum, esquecida. Dei a ela identidade, passaporte, todos os direitos ? diz o artista.
Além dos registros que atestam a cidadania brasileira da ave, a instalação de Walmor Corrêa tem três telas. Uma retrata Leopoldina com o pássaro em seu ombro, ambos com a cabeça levemente inclinada (todos os espécimes empalhados por Natterer ficavam com a cabecinha de lado, devido a um tique do cientista ao fazer o trabalho). Outra tela mostra a ave em sua paisagem natural. Na terceira, o artista, com a ajuda de Reppening, ?traduz? os sons do pássaro, segundo sua função. Por exemplo, o som que faz para alertar a família sobre a aproximação de um predador é transcrito como ?Filhos, quietos! Não se mexam! Há perigo próximo de nós!? Há ainda um fac-símile do livro registrando a entrada do pássaro nos EUA, um vídeo detalhando o processo da obra e um mapa com a demarcação das terras da Sporophila, ameaçada de extinção ? a ave foi muito capturada devido ao seu canto.
? Sempre que posso busco essas questões ligadas à história natural, à ciência, e sobretudo aos viajantes que vieram para cá. Sempre li os naturalistas mesmo sem ter certeza de que poderia usar algo. Gosto de pinçar nessas histórias o que chamo de vírgula. Quando encontro a vírgula, a arte entra ? diz.
MAR EXIBE TELA DE 200 QUILOS
A porção contemporânea da mostra no MAR ainda tem fotografias de D. João de Orleans e Bragança, quadrineto de D. Pedro I e dona Leopoldina. Elas foram produzidas na tribo indígena dos camaiurás em dois momentos: 1978 e 2015.
? Quisemos fazer essa brincadeira: mostrar que há, no presente, o mesmo interesse antropológico de 200 anos atrás ? diz o curador assistente Peter Tjabbes, responsável pela interface com as numerosas instituições que contribuíram para a mostra.
Há obras do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do IMS, da coleção Fadel, do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, entre muitos outros. Uma tela de autor desconhecido retrata dona Maria Epifânia de São José e Aragão, rica senhora baiana do século XVIII com portentoso bigode. Ela pertence ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. O Arquivo do Grão-Pará, da família imperial, emprestou documentos inéditos, como o livrinho ?Normas de conduta?, com regras de comportamento que dona Leopoldina escreveu do próprio punho, aos 16 anos.
Uma das maiores atrações é um quadro de Simplício de Sá, cabo-verdiano que foi aluno de Debret e assumiu seu lugar como retratista da corte. A obra pintada em 1826, último ano de vida de Leopoldina, pesa cerca de 200 quilos e saiu pela primeira vez da Fundação Romão Duarte para a exposição.