BERLIM – Sentada no fundo de uma cadeira de uma suíte de hotel,
Kristin Scott Thomas é a imagem do cansaço físico e mental. Afinal, aquele era o
terceiro dia seguido de promoção de ?The party?, longa-metragem que competiu
pelo Urso de Ouro no Festival Berlim, mês passado, depois de sessões de gala,
entrevistas para a imprensa e a TV do mundo inteiro. Mas a atriz britânica ainda
é toda entusiasmo quando fala da experiência em fazer o filme dirigido pela
conterrânea Sally Potter ? a mesma de ?Orlando: A mulher imortal? (1994) ?, e
que marca o fim de seu exílio do cinema, anunciado há pouco mais de dois anos à
uma imprensa inglesa estarrecida.
? A alegria de ser ator é conseguir se vestir da pele de alguém que é o
oposto absoluto de você. Essa é a parte luxuosa do fazemos, de onde vem o prazer
do nosso trabalho, que é deixar nossas vidas de lado e nos transformarmos em
pessoas absolutamente desprezíveis, assustadoras. Ou podemos ir ao outro
extremo, e interpretar alguém como Madre Teresa de Calcutá. Acho que foi esse
prazer que reencontrei em trabalhar em filmes como este, da Sally, ou em ?The
darkest hour?, do Joe Wright, no qual eu farei Clementine, mulher de Winston
Churchill ? contou a atriz de 56 anos, indicada ao Oscar por sua atuação em ?O
paciente inglês? (1997), o épico de Anthony Minghella (1954-2008), à Revista O
GLOBO.
Kristin era uma das artistas mais famosas do mundo, no final dos anos 90,
quando pela primeira vez sentiu-se compelida a recalcular a trajetória
profissional. Catapultada pelo sucesso internacional da comédia romântica
?Quatro casamentos e um funeral? (1994), ela emendou participações em grandes
produções americanas, como ?Missão: Impossível? e ?O encantador de cavalos?. Aí
veio a exaustão com o modelo de produção de Hollywood, a dieta de inglesas
aristocráticas que lhe era atribuída, e ela decidiu dedicar mais tempo ao
teatro, ?onde poderia falar de temas mais relevantes?.
A partir dos anos 2000, já era mais fácil encontrá-la em montagens de textos
de Anton Tchekhov e Harold Pinter, em palcos na Broadway ou no East End
londrino. Chegou até a ganhar o Laurence Olivier, o maior prêmio de teatro
britânico, por sua atuação em uma versão de ?As três irmãs?, de Tchekhov, em
2003. Kristin havia redescoberto o prazer de fazer teatro, deixando os filmes
como coadjuvantes de uma premiada carreira de intérprete. O marido, o francês
François Olivennes, e os três filhos do casal (Hannah, Joseph e Georges) também
agradeceram a decisão.
Em 2014, já separada de François, novo sinal de fadiga:
sentindo-se subaproveitada em produções descritas como caóticas, com roteiros
?escritos e reescritos no último minuto?, e que a tinham no elenco apenas como
agregador de valor comercial, Kristin anunciou sua retirada do cinema. De nada
adiantou sucessos como ?Há tanto tempo que te amo? (2008), de Phillipe Claudel,
sobre uma mulher que tenta se reintegrar à família depois de 15 anos na prisão,
que lhe rendeu uma indicação ao Bafta (o Oscar inglês) e ao Globo de Ouro. ?Não
consigo lidar mais com filmes?, reagiu, à época.
NA CADEIRA DE DIRETORA
O retorno de Kristin ao cinema acontece também em nova e
inesperada frente: ela se lança como diretora ainda este ano, à frente do drama
romântico ?The sea change?. Adaptação do livro homônimo da escritora Elizabeth
Jane Howard, em roteiro desenvolvido por Rebecca Lenkiewicz (autora do texto de
?Ida?, produção polonesa vencedora do Oscar de filme estrangeiro de 2015), o
filme descreve a crise do relacionamento de um casal de ingleses, que chega à
fase mais profunda durante uma temporada numa ilha grega.
? Vejo o meu interesse pela direção como uma evolução natural da minha
trajetória como contadora de histórias, agora de um ponto de vista mais
abrangente, aberto ? entende a atriz, que debutou nas telas em ?Sob o luar da
primavera? (1986), extravagância visual e musical dirigida e coprotagonizada por
Prince (1958-2016), o astro pop americano. ? Sempre me vi espreitando o trabalho
dos realizadores com os quais trabalhei ao longo da minha carreira. Ficava
olhando os monitores sobre os ombros deles, nos sets. Fiz alguns filmes muito
bons, e espero que o que aprendi com eles tenha ficado em minha pele.
Kristin avisa que o desejo de dirigir filmes às vésperas
de completar 57 anos ? em maio próximo ? não é um capricho da meia idade. Nem
tão pouco algo que pretende tornar uma prática regular:
? Não é algo incomum no nosso meio. Muitos atores dirigem filmes e voltam à
função de ator felizes da vida. Se você gosta da humilhação quando está na
posição de ator, por que não dar um passo adiante na experiência humilhante?
Vamos à humilhação maior! ? zomba, com a ironia que lhe é característica.
Filha de um piloto da Marinha Real britânica e uma dona
de casa, Kristin é a mais velha de cinco irmãos. A infância e a juventude não
foram exatamente um mar de rosas: aos cinco anos perdeu o pai em um acidente de
avião; o padrasto, também piloto, morreria de maneira idêntica seis anos depois.
Estudou em um internato, antes de entrar para uma escola de arte dramática, em
Londres, onde foi informada de que não conseguira a nota para se formar. Decidiu
rumar para Paris, onde tinha uma amiga, e lá voltou a tomar aulas de
interpretação, pagas com o dinheiro que ganhava como au pair. Depois
foi descoberta por Prince, conheceu François, e acabou criando raízes na França.
A partir daí, filmaria em duas línguas.
Ainda jovem, Kristin enfrentou momentos de depressão e insegurança, mas alguns anos de análise a transformaram em uma mulher franca e centrada, quase imperturbável. A sinceridade com que falava sobre o que a desagradava na profissão ou nos filmes que fazia costumavam ser interpretadas como reações de uma artista mal-humorada, de temperamento gélido. Eram, em verdade, manifestações espontâneas de seu desdém por certos ambientes cinematográficos em que ?o ator se vê apenas entregando material cru a um diretor, para que ele faça o seu filme?. A promoção de um filme era, até bem pouco tempo, uma tarefa particularmente sofrível.
? Ficaria feliz em ser invisível a maior parte do tempo ? afirma, referindo-se aos momentos em que é obrigada, por causa da profissão, a se submeter ao escrutínio público, ou da imprensa. ? Divulgar o trabalho é, muitas vezes, uma cláusula contratual. Você tem de defendê-lo, por pior que o filme seja, porque você foi paga para isso. Quando você faz um trabalho do qual não gostou, ou passou por uma experiência terrível no set e depois têm que promovê-lo, é terrível, deprimente, infrutífero. Em situações como essas que você é mal interpretada, suas palavras são tiradas do contexto, e acabam conduzindo a distorções grosseiras.
Daí a dificuldade ? talvez potencializada pelo do cansaço da maratona de atividades em Berlim ? que Kristin tem para destacar trabalhos que a marcaram. Por mais que a crítica o tenha detonado, ela adora sua contribuição no violentíssimo ?Só deus perdoa?, no qual vive uma mulher com sede de vingança, ?um personalidade extremamente oposta à minha?. Claro que também vai ficar na memória a mãe que carrega o fardo do assassinato do próprio filho em ?Há tanto tempo que te amo?, que a deixou emocionalmente exaurida. Mas nenhum deles supera Katherine Clifton, mulher casada que vive uma paixão proibida no meio da Segunda Guerra em ?O paciente inglês?.
“O PACIENTE INGLÊS”: ORGULHO
Apaixonada pelo livro de Michael Ondaatje que inspirou o filme, Kristin lançou-se na batalha pelo papel. Conseguiu um encontro com Anthony Minghella, que resultou-se desastroso, por causa do ?meu nervosismo e da minha insegurança?. Chegou a escrever uma carta ao diretor, pedindo desculpas por aquele ?almoço terrível?, terminando por dizer que ela era ?a K em seu filme?. Ganhou um texto com Ralph Fiennes, mas o estúdio queria Demi Moore, ?alguém mais conhecida?, para o personagem. As batalhas internas se sucederam até que o então todo poderoso Harvey Weinstein entrou no projeto e bancou a visão de Minghella.
As filmagens no deserto da Tunísia ? o mesmo que serviu de cenário para o primeiro ?Star wars? ? foram um tormento. A paisagem era estonteante, mas os atores tinham que trabalhar sob temperaturas tórridas durante o dia, ou gélidas à noite, e sempre com um sorriso no rosto. No final de tantos transtornos, ?O paciente inglês? chegou ao Oscar com 12 indicações e venceu 9, incluindo os de melhor filme, diretor e atriz coadjuvante (Juliette Binoche). Ainda assim, foi preciso tempo para Kristin admitir o quão inesquecível foi a aventura chamada ?O paciente inglês?:
? Vinte anos depois, posso dizer que sou extremamente orgulhosa de ter feito parte daquele filme. Tenho muito orgulho do trabalho que fiz, da minha performance, dos atores com os quais eu trabalhei em um ambiente pouco acolhedor. É um milagre que tenhamos conseguido transformar aquele livro em um filme. Mas foi preciso todo esse tempo para eu reconhecer isso.