RIO ? “Tenho 92 anos (aplausos). Não enxergo bem. Não ouço bem (risos e aplausos). Uso esse prompteur para me lembrar das letras, quando preciso (mais risos e mais aplausos)”. Charles Aznavour manda um papo reto – conversation droite, em francês castiço – logo no começo de sua apresentação no lotado e quente (no sentido termal mesmo) Vivo Rio, na noite deste sábado. Um fenômeno de vitalidade, a lenda viva da chanson française fala muito com o público, em sua língua natal, apresentando as músicas, fazendo piadinhas e até mandando recados políticos, como em “Les émigrants”, que abre o show: “Eles criaram um universo novo/ Sem holocausto e sem guetos”, diz a homenagem aos imigrantes, há 30 anos presente nos setlists do cantor. links música 19.3
Disposto em cadeiras, sem as habituais mesas (o ingresso mais barato custava R$ 375, a inteira), o público enfrentava o calor ? que pode ter sido exigência do cantor ou economia de ar condicionado devido ao dia chuvoso de fim de verão, como se a temperatura tivesse caído a, digamos, 18 graus ? com galhardia e total respeito/fascínio por Aznavour desde antes de sua entrada no palco. De terno preto, assim como os oito integrantes da banda, ele puxou um banquinho para perto de si ali pela segunda música, mas na maior parte do tempo ficou de pé mesmo, ensaiando até eventuais piruetas nos momentos mais agitados das canções. ? Faço músicas sobre todos os assuntos ? disse ele, que se definiu como um “cantor de variedades” mais tarde, ao apresentar a banda. ? Mas gosto muito de falar sobre a passagem do tempo, a velhice, as memórias.
Era a deixa para a magnífica “Avec un brin de nostalgie”, cantada apenas com o piano de cauda de Erik Berchot, o astro da banda: “Com um toque de nostalgia/ Eu carrego minha velha pick-up/ Com os vinis que comprei/ Nos meus anos loucos de be-bop/ Sirvo-me de uísque/ E resgato meus pensamentos/ Embaçados de melancolia/ Para viajar no meu passado”.
Aznavour melancólico, com uma melodia tristonha, falando dos anos que não voltam mais: a essência da música francesa, para o bem e para o mal. Por um motivo muito simples: quando ele resolve ser animadinho, em momentos “Especial de Natal de Roberto Carlos encontra Ray Conniff”, como na bobinha “Mes emmerdes”, sai a lenda da música planetária e entra o apenas simpático cantor de varietés, como ele se define, banhado em sons de cordas e sopros forjados em teclados. Não que nesta faceta Aznavour não se saia bem: ele se dá ao luxo de cantar o clássico “Que c’est triste Venise” em italiano (“Venecia sin ti”), arrisca um espanhol, um inglês (em mais um clássico, “She”, conhecida dos mais jovens na versão de Elvis Costello para a trilha de “Um lugar chamado Notting Hill”; a música é de Aznavour com Herbert Kretzmer, meninos), brinca, sapateia…
POLÍTICA E MELODIAS DEPRÊS
Mas o programa de auditório empata com a qualidade musical.Uma alternativa válida à Paris chuvosa dos clássicos está no sangue do cantor: “Compus esta para contar a infeliz história do meu povo armênio”. A bela e terrível “Ils sont tombés”, além da mensagem política (“Eles caíram (…) Ignorados, esquecidos em seu último sono”), traz em sua melodia circense ? sim, por mais bizarro que pareça, o mesmo frescor cigano que o System of a Down mistura a seu moedor de carne musical ? um mexidinho que clica; um flutuar de carrossel que remete ao clichê do parisiense de boina, acordeom e piteira, mas que faz baterem os pés, instintivamente.
O povo até se anima com palmas ritmadas, mas o Aznavour em estado puro reaparece mais para o fim, nas melodias deprês e maravilhosas de “Hier encore”, “La bohème” (que, diz a lenda, fez tanto sucesso por aqui em 1965 que ganhou uma hoje raríssima versão em português) e no hino “Comme ils disent”, que conta a história de um rapaz que mora com a mãe, tem dois canários, uma tartaruga e uma gata (“une chatte”, palavra que tem outras interpretações) e que, à noite, faz um número “muito especial”, que acaba com um “nu completo”: “Eu sou homo, como eles dizem”, já cantava ele em 1972, avant ? mas muito avant ? la lettre. Como diria Nelson Sargento, colega de geração de Aznavour (nascido dois meses depois dele, em julho de 1924) a chanson française agoniza, mas não morre.
COTAÇÃO: BOM