Cotidiano

Encontrada primeira mutação genética ligada à esclerose múltipla

RIO – Uma das doenças neurodegenerativas mais devastadoras, e misteriosas, a atingir a Humanidade, a esclerose múltipla acaba de ter uma primeira mutação genética diretamente associada ao seu desenvolvimento, num achado que dá esperanças de melhoria da qualidade de vida e até mesmo cura para milhões de pacientes que sofrem com o mal em todo mundo. Além disso, como a esclerose múltipla é de difícil diagnóstico, com uma ampla gama de sintomas que podem surgir e passar ao longo de muitos anos, a descoberta fornece ainda uma oportunidade para identificar precocemente pessoas mais propensas à doença e talvez tentar impedir ou retardar seu aparecimento.

? O achado é crítico para nossa compreensão da esclerose múltipla ? avalia Carles Vilariño-Güell, professor do Departamento de Genética Médica da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e um dos líderes do estudo, publicado na edição desta semana do periódico científico ?Neuron?. ? Pouco se sabe sobre os processos biológicos que levam ao surgimento da doença, e esta descoberta traz um potencial maciço para o desenvolvimento de novos tratamentos que ataquem suas causas subjacentes, e não apenas os sintomas. Esta mutação põe as pessoas na beira do abismo, mas algo ainda tem que lhes dar um empurrão para que a doença progrida.

Na esclerose múltipla, o sistema imunológico da própria pessoa ataca a chamada mielina, uma espécie de ?revestimento? das suas fibras nervosas. Com isso, acontecem ?curto-circuitos? que perturbam e embaralham o fluxo de sinais entre o cérebro e o resto do corpo. Assim, a doença, que afeta mais de 2 milhões de pessoas globalmente, não tem cura e pode se manifestar com sintomas que vão desde fadiga e fraqueza, passando por tremores e espasmos, a até problemas de visuais, de fala e cognitivos na sua forma progressiva mais grave.

Mas embora há tempos se observe que a esclerose múltipla é comum em algumas famílias ? o que já indicava que, ao menos em alguns casos, ela tinha fatores hereditários ?, a identificação de genes associados a ela continuou a escapar dos cientistas. Assim, os cientistas mergulharam em material coletado pelo Projeto Colaborativo Canadense sobre Suscetibilidade Genética à Esclerose Múltipla, um enorme banco com amostras genéticas de quase 2 mil famílias no país.

Os pesquisadores da universidade canadense se focaram especialmente em uma família que tinha vários casos da doença ? cinco em duas gerações ?, realizando sequenciamento do seu DNA em detalhes inéditos em busca de mutações no código genético que estivessem presentes em todas as vítimas. Uma vez identificado o gene defeituoso, eles voltaram ao banco de dados e encontraram a mesma mutação em outra família com diversos casos de esclerose múltipla. Além disso, os pesquisadores destacaram que todas os pacientes nas duas famílias apresentavam a forma progressiva, e mais grave, da doença.

O neurocientista Weihong Song, também pesquisador na Universidade da Colúmbia Britânica e coautor do estudo, explica que a mutação, em um gene chamado NR1H3, causa a perda de função de seu produto genético, a proteína LXRA. Segundo ele, esta proteína e outras da mesma classe são responsáveis por controlar a atividade de genes envolvidos na regulação do equilíbrio das gorduras, as inflamações e a imunidade inata do corpo, isto é, sua primeira e rápida resposta ?genérica? a ataques. Além disso, estudos anteriores mostraram que camundongos modificados para não produzirem a LXRA apresentaram problemas neurológicos e deficiências em sua mielina.

? Existem claras evidências que apoiam a visão de que esta mutação tem consequências em termos de função biológica, e que a proteína LXRA defeituosa leva ao desenvolvimento da esclerose múltipla familiar ? afirma Song.

Ainda de acordo com os pesquisadores, apesar de apenas 10% a 15% dos casos de esclerose múltipla parecerem ter um componente hereditário, pessoas com a mutação identificada têm 70% de chances de desenvolver a doença.

? Se você tem este gene, as chances são de que desenvolva esclerose múltipla e sua condição se deteriore rapidamente ? resume Anthony Traboulsee, outro coautor do estudo da universidade canadense. ? Isso nos dá uma janela de oportunidade precoce e crítica de jogar tudo em cima da doença na tentativa de pará-la ou freá-la. Até agora, não tínhamos nenhuma base para fazer isso.

Por fim, embora calculem que só uma em cada mil vítimas da doença tenham a mutação, os pesquisadores destacam que suas análises apontaram diversas variações comuns no mesmo gene que são indicadores de risco para desenvolvimento de esclerose múltipla.

? Desta forma, mesmo se os pacientes não tiverem a mutação rara, tratamentos que tenham como alvo esta via biológica provavelmente poderão ajudá-los ? complementa Vilariño-Güell.