Cotidiano

Reedição de livro traz reflexões de Debret sobre a sociedade brasileira

2016 913808780-071.jpg_20160603.jpgRIO – Ao chegar ao Rio, em 1816, o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) encontrou uma nação em construção. Seu papel nesta obra coletiva, como membro da missão artística francesa, era participar da implantação da Academia Imperial de Belas-Artes e registrar a vida da Corte portuguesa na sua nova sede. Contudo, o pintor jacobino, que acompanhou de perto a Revolução Francesa e ficou desempregado após a queda de Napoleão, não se contentou com a vida dos palácios. Fascinado pelas ruas, nos 15 anos que viveu no país ele construiu a principal iconografia da vida social brasileira no século XIX. Links Debret

Menos conhecidos, entretanto, são os textos que Debret escreveu para cada uma das cenas que registrou, publicados em ?Viagem pitoresca e histórica ao Brasil?. Lançada na França em três tomos, entre 1834 e 1841, a obra ganha nova edição em volume único numa parceria entre a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), após três décadas fora de catálogo, e é parte das comemorações do bicentenário da missão artística. Todas as pranchas do artista, guardadas na FBN e nos Museus Castro Maya, foram digitalizadas e tratadas.

Sobre o mercado da Rua do Valongo, escreveu: ?Essa sala de venda, silenciosa na maioria das vezes, está infectada pelos miasmas de óleo de rícino que se exalam dos poros enrugados desses esqueletos ambulantes, cujo olhar furioso, tímido ou triste lembra uma ?menagerie? (coleção de animais vivos em cativeiro, em geral selvagens e exóticos)?. E prosseguiu: ?Reproduzi aqui uma cena de venda. Pela disposição do armazém e a simplicidade do mobiliário, vê-se que se trata de um cigano de pequena fortuna, traficante de escravos?.

OBRA TEÓRICA DE UM SOLITÁRIO

Esse desejo de Debret de compreender um mundo que lhe era tão estranho o distingue dos outros pintores que passaram pelo Brasil no século XIX, afirma o filósofo e crítico Jacques Leenhardt. Diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o professor foi o responsável pela nova edição brasileira e escreveu um ensaio inédito que abre o livro.

? Debret se projeta imediatamente dentro da vida social. Ele desenha sentado na rua. Em uma das pinturas, ele enfoca um objeto na mão de um escravo e depois escreve um comentário. Debret queria tentar entender o que estava acontecendo.

O Brasil do século XIX por Debret

Leenhardt argumenta que a obra do pintor pode ser lida como um trabalho de antropologia e sociologia sobre o Brasil oitocentista. O primeiro tomo, ?Casta selvagem?, é dedicado aos índios. O segundo, ?Atividade do colono brasileiro?, aborda as ruas e o trabalho. O terceiro, ?História política e religiosa, estado das Belas-Artes?, retrata a Corte e a Igreja. Em cada um, há ensaios de Debret sobre os temas. Para o filósofo, o pintor tinha consciência de que estava diante de um país em profunda transformação e vivendo um momento histórico no Ocidente: a criação de um império a partir da colônia.

? Quais as condições históricas que tornaram uma colônia sede de um império e as implicações disso? Ele vai propor um modo de olhar esse processo, através da sua diversidade ? diz Leenhardt. ? Debret é um caso único de pintor que escreve, três, quatro páginas sobre cada cena que está retratando. E esse conjunto imagem-texto está inserido num contexto mais amplo, de uma obra teórica.

A vida pessoal de Debret oferece algumas explicações para sua atitude nos anos em que viveu no Brasil. Seu filho morreu antes de ele deixar a França, e logo depois se separou da mulher. Sozinho no Rio, morou num albergue e não ficou preso a círculos sociais. Essa solidão está presente nos dois únicos autorretratos do pintor, destaca o filósofo. Em um, está no seu ateliê. No outro, está sentado na rua, com um chapéu de papel. Em ambos, está sozinho.

Após retornar para a França, em 1831, Debret tampouco alcançou reconhecimento. ?Viagem pitoresca e histórica ao Brasil? foi um fracasso de vendas por não retratar o país com exotismo, algo comum entre seus contemporâneos. A edição francesa só ganhou uma segunda edição em 2014, 160 anos após a publicação do primeiro tomo, graças a Leenhardt. O livro também enfrentou suas agruras no Brasil. Debret enviou um exemplar da obra para a Biblioteca Nacional, mas ela foi recusada.

? O parecer dizia: ?Esse livro não interessa ao Brasil? ? conta o filósofo. ? A não aceitação foi provocada exatamente pelo modo como ele representou a escravidão. Debret não gostava muito do português, que não quis trabalhar e colocava os brasileiros para fazer as coisas.

CENÓGRAFO DAS FESTAS DA CORTE

Apesar da sua dedicação em registrar a vida nas ruas do Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret não deixou de retratar a vida da Corte portuguesa. A própria vinda da missão artística francesa, a convite da Coroa, tinha esse objetivo: construir uma iconografia, e junto com ela um imaginário, de um império europeu exilado na colônia. Debret tinha longa experiência na pintura histórica: era primo e discípulo de Jacques-Louis David, líder do neoclassicismo francês, e trabalhou como pintor de Napoleão, além de participar da decoração edifícios públicos e particulares.

Todo o tomo três de ?Viagem pitoresca e histórica ao Brasil? é dedicado a esse tipo de trabalho. Sobre a aclamação de D. João VI, em 1816, após a morte de sua mãe, Debret escreveu: ?O comandante da praça e dois oficiais de seu estado-maior mantêm-se no centro de um espaço vazio reservado em torno do balcão. Pelotões de infantaria e de cavalaria distribuem-se entre a massa de espectadores espalhados pelo largo. É preciso dizer que o conjunto dessas medidas militares contribuiu bastante para tranquilizar o novo rei temeroso da explosão de um motim popular fomentado pelo descontentamento dos portugueses enciumados com sua longa permanência no Brasil e isso apesar da promessa feita de voltar para Lisboa logo após a conclusão da paz geral?. Além de pintar, Debret faz uma crônica política do regime.

O pintor também atuou como cenógrafo no Brasil. Toda celebração, como a aclamação de D. João VI e D. Pedro, exigia a montagem de uma grande estrutura que desse a grandiosidade ao evento.

? Isso tem a ver também a história da teatralidade barroca, que foi retomada pela Revolução Francesa. Debret já tinha a experiência das festas revolucionárias, que faziam uma encenação da vida política, reuniam o povo para criar uma unanimidade. Ele se colocou à disposição do rei de Portugal, que também estava interessado em criar o espetáculo da monarquia, do poder. A nova Corte, estabelecida no Brasil, precisava se mostrar para o mundo ? explica Leenhardt.