RIO – Neste romance de estreia de Priscila Gontijo, São Paulo invade as páginas num mergulho errante por ruas, becos, boates, apartamentos desoladores, andaimes, buracos de esgoto. Uma metrópole cruel e ao mesmo tempo lírica, em que o vento da tarde faz cócegas nas folhas das árvores. E ?nuvens aceleram o passo ao encontro do céu azul?.
A cidade é o rascunho onde piso, avisa Irina logo no prefácio. A narradora é uma moça sensível, descolada, insegura, para quem nada parece dar certo. Fuma um cigarro atrás do outro e anda exagerando na dose de Rivotril. Num mesmo dia é assaltada e demitida do trabalho numa loja de aquários onde se comporta como um elefante numa vitrine de louças. Enquanto amarga um cotidiano duro, sonha com Moscou, vive a fantasia de uma viagem encantada. Irina tem um gato chamado Vodka, um peixe cego que ela batizou de Míchkin, e suas relações com os homens são permeadas pelos desencontros. O namorado fazendeiro é a antítese da moça intelectual, e a briga dos dois é descrita com intensidade dramática e humor. A paixão pela Rússia tem origem familiar: Irina é filha de um velho comunista que morou na antiga União Soviética e ganha a vida como tradutor. A figura do pai e as recordações de infância da garota, enredada nos mistérios e paradoxos da linguagem, merecem realce, como neste trecho: ?E o dia não amanhecia. Na ponta dos pés, a menina vai espreitar.(…) Espia as palavras: mente, carbono, hospício, gelado, corpo, nudez, anfitrião. Nada faz sentido?.
A realidade reserva lances surpreendentes para Irina, que ganha num concurso de frases uma viagem a Moscou. Começa então um périplo para encontrar quem queira acompanhá-la, e esta busca é o fio condutor em torno do qual a segunda parte do romance se estrutura. Ninguém parece disposto a aceitar o seu convite, e diante do leitor desfilam personagens insólitos, desenraizados, perdidos na periferia da metrópole. Envolvida com a família, a amiga professora de culinária tântrica não se revela a alternativa mais viável. O viciado em crack idem. O colega que trabalha no zoológico não pode tirar férias neste momento. O corretor de juros também não está disponível. A amiga Carol trabalha num clube noturno fazendo strip-tease. Irina tenta convencê-la e acaba envolvida numa cena de sexo explícito a três e numa bebedeira que a deixa de ressaca e com uma sensação de inutilidade.
?Peixe cego? foi um dos finalistas do Prêmio Sesc de Literatura de 2016 e apresenta uma linguagem ágil que dá conta do recado da narrativa. Mas algumas vezes a escritora esbarra no desejo de criar imagens surrealistas, nem sempre bem-sucedidas. Vejamos esta reflexão de Irina: ?Sou dona do mistério. O mistério, o pai. Impossibilidade, a mãe. Viés, a filha. Eis minha família. O filho bastardo é o subsolo pregado no céu de estrelas ociosas?. A bela descrição sucinta do contexto familiar é quase atropelada por um subsolo pregado no céu que não diz muito a que veio. A linguagem funciona melhor quando é poética e nos ajuda a descobrir a ?intangível metrópole alucinada de sombrias e doces criaturas?. Eis aí uma visão de São Paulo sensível e sugestiva. Mas por outro lado encontramos, numa mesma página, uma ?contumácia sobrenatural? e um ?funâmbulo editor?. É claro que o escritor tem a liberdade de escolher e empregar as palavras que quiser, mas a boa impressão final causada por uma narrativa costuma estar mais próxima da simplicidade com que ela nos toma pela mão e nos leva a percorrer a floresta do texto. E o talento de Priscila Gontijo se encarregará de nos brindar com novas produções literárias de qualidade.
*Elias Fajardo é autor de ?Belo como um abismo?(finalista do prêmio Jabuti de romance de 2015) e ?Poemas do vai e vem?
?Peixe cego?
Autora: Priscila Gontijo
Editora: 7Letras
Páginas: 188
Preço: R$ 44
Cotação: Bom