RIO ? Assim que a conselheira da Casa Branca, Kellyanne
Conway, usou o orwelliano termo ?alternative facts? (?fatos alternativos?) em
uma entrevista na TV americana, em janeiro, as vendas do clássico ?1984?
dispararam na Amazon. O romance de George Orwell, que voltou à lista dos mais
vendidos quase 70 anos após a sua publicação original, é visto por muitos como a
mais didática tradução do recém-empossado ? e já contestado ? governo Donald
Trump.
A narrativa imagina uma sociedade distópica, onde todas as ações de seus
habitantes são monitoradas por uma oligarquia totalitária. Para manter o
controle político e a submissão do povo, ela criou a ?novilíngua? ? um idioma
que restringe a linguagem para distorcer e eliminar informações reais. Vale
lembrar que, desde o seu primeiro dia no poder, Trump faz uso de uma linguagem
simplória e limitada para empurrar mentiras aos americanos, como a de que sua
posse teria tido o maior público da História.
‘LEIA E LUTE’
Usado justamente para justificar as mentiras do
presidente, o ?fatos alternativos? de Kellyane levou a comparações imediatas com
a ?novilíngua?. Mas, apesar de ser a mais lembrada, ?1984? não é a única
distopia literária que ressoa com o momento político do mundo. Na semana
passada, ?O conto da aia? (1985), da canadense Margaret Atwood, chegou
subitamente ao topo da lista da Amazon. Enquanto antigos clássicos, como
?Admirável mundo novo? (1932), de Aldous Huxley, voltam à pauta, quase todos os
dias matérias na imprensa internacional buscam alguma trama remota, como ?O
concorrente? , de Stephen King (1982), que teria ?previsto? o presidente Trump,
a era da pós-verdade e outros fenômenos contemporâneos. Estaria a sociedade
procurando nas distopias imaginárias do passado uma resposta para seus temores
atuais?
? A distopia, quando não é mero recurso narrativo,
geralmente se propõe a avisar: ?Olha, se X continuar do jeito que está, vamos
acabar caindo nessa situação infernal Y? ? opina o escritor Carlos Orsi, autor
de livros de ficção-científica como ?Campo total?. ? Acho que distopias só são
visíveis ou na perspectiva histórica ou, de dentro, por quem está olhando para a
boca do canhão. Não creio que o cidadão médio ponha a mão na testa e pense,
?cara, que distopia!?. Mas creio que dá pra ver os sinais de que o medo de um
futuro imaginado muito ruim acaba levando as pessoas a colaborar com a
construção de um futuro real também muito ruim.
No momento em que os mais terríveis pesadelos parecem
estar se tornando realidade para muita gente, a ficção distópica testa a sua
força e influência, sendo usada inclusive como elemento de resistência. Na
semana passada, dezenas de cópias de três importantes distopias da língua
inglesa ? ?1984?; ?O conto da Aia?; e ?In the Garden of Beasts?, de Erik Larsen
? foram compradas por um benfeitor anônimo e colocadas para doação em uma
livraria de Los Angeles, com as palavras de ordem: ?Leia e lute?.
A própria Atwood, que não para de dar entrevistas após o
súbito revival de seu livro (cuja adaptação para o cinema deve estrear
em abril), compartilhou a notícia nas redes sociais. No Brasil, ?O conto da Aia?
deve ganhar uma nova edição em meados de 2017 pela Rocco, com nova capa. É fácil
entender o interesse pela trama, que imagina um futuro em que extremistas
cristãos aproveitam um falso ataque terrorista islâmico para instituir uma
teocracia totalitária. Já ?1984?, atualmente no catálogo da Companhia das
Letras, teve um aumento de dez por cento das vendas por aqui em relação ao ano
passado.
? Pelo menos no mercado americano, parece ser um bom
momento para publicar distopia. Dá para notar pelo aumento do número de
originais com essa temática ? observa Otávio Costa, publisher da Companhia. ? No
Brasil ainda é cedo para dizer se isso vai se confirmar, mas há sinais.
Interessante notar que, tirando os países de língua inglesa, o Brasil é onde
Orwell mais vende em números absolutos (foram, até hoje, 470 mil exemplares
de ?A revolução dos bichos? e 260 mil de ?1984?).
Ex-editor na casa que mais publica ficção científica no
Brasil, a Aleph, Daniel Lameira acredita que o mercado já vinha antecipando esse
momento ? tanto é que está repleto de tramas distópicas derivadas de clássicos
como ?1984?. A própria Aleph vem resgatando obras icônicas, e em breve publicará
?Nós?, do russo Evgueny Zamiatin (livro que inspirou Orwell) e
?Despossuídos?, da Ursula K. Le Guin. Curiosamente, a escritora, de 87 anos,
respondeu no início do mês a um artigo do ?Guardian?, no qual afirma que ficção
científica nada tem a ver com ?fatos alternativos?: ?A comparação não funciona.
Nós escritores inventamos coisas (…). Podemos chamá-las de ficção porque não
são fatos?.
? O mundo sempre foi parecido com uma distopia para
aqueles que não detêm os meios de produção; podemos discutir com qual distopia
estamos mais parecidos: o amor à servitude de Huxley, a dominação do Estado,
como Zamiatin e Orwell, as lobotomias como ?Laranja Mecânica?? ? provoca
Lameira. ? É impossível a ficção concorrer com a realidade. Como diz
Wittgenstein: os limites da linguagem são os limites do real.
MODA RECENTE
O editor Erick Santos, da Draccon (outra editora nacional
prolífica em ficção científica), acredita que a distopia se tornou uma moda
recente para o leitor jovem adulto. Mas ele faz uma ressalva sobre como a
produção mainstream atual aborda o tema:
? Ela tem questionamentos mais sobre as dores de alguém
que crescia e chegava à fase adulta do que profundas reflexões sobre a política
e a sociedade.
A procura pelo ?livro que teria previsto? nosso momento
é um erro, segundo o autor de ficção científica Octavio Aragão. Afinal, quando
Orwell e muitos outros escreviam sobre o futuro, estavam criando parábolas sobre
o presente em que viviam. Não por acaso, muitos dos livros que voltam com força
agora foram publicados em épocas especialmente turbulentas (o fascismo dos anos
1930-40 ou o ultraliberalismo dos anos 1980).
? Desde o nascedouro, os leitores têm a tendência de
relacionar as qualidades da obra à sua suposta capacidade de antever tecnologias
ou estruturas sociais ? lembra Aragão. ? No entanto, a ficção científica
discorre sempre sobre o presente, sobre extrapolações do que já existe, visando
uma análise crítica de seu tempo.