Opinião

O extremismo levado a “Cabo”

José Elias Castro Gomes

Em seu texto, José Elias Castro Gomes faz um chamado para o debate contra o extremismo

Eu, você, todos nós somos seres à deriva no cosmo infinito em busca de um propósito existencial. Calma, este não é um texto do tipo “cabeça”, então já explico essa introdução presunçosamente filosófica. O fato é que dificilmente temos uma epifania que nos faça identificar nossa razão de existir, ou de estarmos no lugar certo para a realização desse propósito. Mas, eventualmente, o destino nos insere em lugares e situações que, estranhamente, parecem colocar-nos no centro do Universo, dentro de um marco histórico no tempo e no espaço.

OK, agora vamos para as explicações…

Estou na Cidade do Cabo, África do Sul. Por si só, esse ponto geográfico extremo já é inspirador e transbordante de histórias esclarecedoras sobre a condição humana. É aqui que fica o Cabo da Boa Esperança, descoberto e cruzado pela primeira vez por Bartolomeu Dias em 1488, um marco da navegação que revelou a ligação entre os oceanos Atlântico e Índico. Esse significado tão precioso (o de unir, conectar) tem relação direta com o evento do qual estou participando: a 13ª International Law Enforcement Intellectual Property Crime Conference.

Trata-se de um encontro promovido pela Interpol que debate assuntos referentes à valorização de marcas e ao debate sobre as riquezas de nações, corporações e organizações sociais. Ao menos em teoria, esse encontro deveria promover um intercâmbio (unir, conectar) entre pessoas do mundo todo (como no meu caso). É o que se percebe “no ar”, ao captarmos aqui e ali idiomas dos mais diversos nas conversas que correm por salões e corredores, como também nas celebrações e até nos espetáculos folclóricos apresentados no palco. Porém a distância entre discurso e prática está tão presente quanto a vocação cosmopolita do evento, e o motivo também encontra coincidência com a geografia local.

“O que nos resta é debater, buscar nos unir e combater o extremismo dentro de nosso alcance.”

O Cabo da Boa Esperança foi inicialmente denominado Cabo das Tormentas, porque os marinheiros de Bartolomeu Dias tiveram grande dificuldade em se opor às tempestades do local e levar a nau a concluir a travessia. Vivemos também aqui no evento uma atmosfera tormentosa. Nada que afete a diplomacia ou o clima elegante e agradável ao redor. Mas há uma atmosfera sutilmente ácida. Claro que essa sensação não é de hoje, estou no país de Nelson Mandela. Só que vivemos um novo Apartheid, dessa vez globalizado e sem a identificação cruelmente clara proporcionada pelo racismo.

Os extremismos não têm cor ou nacionalidade, tampouco são facilmente identificáveis nas conversas dos salões e corredores (e não devido à barreira do idioma). O mundo é naturalmente um ecossistema propício à manifestação de tormentas: temos os abismos sociais, os horizontes nebulosos (e até ameaçadores) das criptomoedas, o cenário abjeto e hediondo do tráfico humano, as guerras intermináveis, os imigrantes que fogem de genocídios e da fome… Ou seja, já temos problemas demais.

Restaria àqueles que estão em condições favoráveis a consciência de que está em suas mãos a possibilidade de atuar nesses terríveis ambientes de forma positiva, revertendo quadros de mazelas sociais inadmissíveis para um planeta que já sonda uma possibilidade próxima de chegar a Marte. E o que impede essa atuação conjunta? O extremismo.

Costumamos classificar como extremistas os integrantes de grupos terroristas, o que é uma ingenuidade. Você pode ser um extremista sem sair do próprio quintal. Um extremista não quer ouvir o outro. Na verdade, gostaria até que o outro não existisse. Não admite a possibilidade de um debate, pois não quer perceber seus dogmas e ideologias sob risco de questionamentos. E o extremista justifica sua posição apontando para os extremistas opositores, como se a radicalização fosse a única resposta plausível contra os radicais. O extremista condena o radical ao mesmo tempo em que se torna um.

Os extremismos não têm cor ou nacionalidade,

tampouco são facilmente identificáveis.

E, sem querer invalidar o evento que vim prestigiar de tão longe, estou percebendo um desfile de posições extremas nesses dias aqui na Cidade do Cabo. Quase todos defendendo os próprios interesses. Os grandes grupos entrincheirando-se, enquanto fica nítida a ausência de um debate sobre distribuição de renda, sobre os motivos de desesperadores êxodos internacionais ou sobre a escravidão perpetuar-se (tema mais do que obrigatório neste país).

De minha parte, acredito que os países ricos deveriam destinar todo o tempo necessário e quem sabe contribuir com uma pequena parte das transações comerciais internacionais a um fundo para apoiar os excluídos que foram vitimados por radicalismos religiosos, condições climáticas desfavoráveis ou qualquer outro motivo. Só quem já tem riqueza pode mudar o planeta. Mas, é claro, estou longe de possuir o poder para levar essa proposta a um patamar de discussão mais elevado e próximo dos gigantes que mandam nas políticas mundiais.

O que nos resta é debater, buscar nos unir e combater o extremismo dentro de nosso alcance.  Isso pode ser exercitado em qualquer ambiente no qual estejamos inseridos. E pode gerar uma reação em cadeia que chegue àqueles que ditam as regras de boa convivência no planeta. Daí, acredito que realmente esse Cabo das Tormentas se tornará de vez Cabo da Boa Esperança.

Para pensar:

1) 25 anos após o Apartheid, o sonho de Mandela ainda é “miragem”.

2) 821 milhões de pessoas passam fome ao redor do mundo, segundo a FAO/ONU 2017.

3) 900 milhões de pessoas vivem em favelas sem o mínimo de dignidade e pouco acesso a serviços públicos (ONU 2016).

4) Deslocamento forçado pelas guerras afeta 65 milhões de pessoas (ONU 2016).

José Elias Castro Gomes é mantenedor do Colégio Semeador em Foz do Iguaçu.