Esportes

João Havelange, o polêmico dirigente que mudou a cara da Fifa

O destino de João Havelange estava escrito antes mesmo do seu nascimento. Há exatos 100 anos, seu pai, o belga Faustin Havelange, sonhava fazer a viagem inaugural do Titanic. Já tinha a passagem comprada mas perdeu o embarque no famoso transatlântico que afundou durante o percurso entre Inglaterra e EStados Unidos, em abril de 1912. Quatro anos depois, nascia no Rio de Janeiro o homem que comandava o futebol brasileiro na conquista dos seus primeiros três títulos mundiais, e ficaria marcado pela forma como fez a Fifa emergir como potência econômica durante seus 24 anos de mandato à frente da entidade.

– Meu pai comprou passagem no Titanic, mas perdeu o barco que o levaria a bordo. Não fosse isso, eu não estaria aqui – lembrou o ex-dirigente numa entrevista a O Globo após ser escolhido para receber o ?Prêmio Faz Diferença?, dado anualmente pelo jornal a quem se destaca em sua área de atuação, como Personalidade do Ano de 2009, por sua atuação decisiva na escolha do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016.

Apenas o tempo dedicado ao esporte – mais de 70 anos – já daria uma vida. Primeiro como atleta: jogou futebol no juvenil do Fluminense, disputou provas de natação nos Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e jogou pólo aquático nos Jogos de Helsinque (1952). A partir da eleição para a presidência da antiga CBD (Confederação Brasileiro de Desportos, que originou a atual CBF), em 1958, deu início a uma bem sucedida carreira de mais de meio século como dirigente esportivo, cujo ponto máximo foi o período em que presidiu, e revolucionou, a Fifa, entre 1974 e 1998. Havelange era presidente da Fifa até 2013, quando perdeu o título por causa de denúncias de corrupção.

Havelange era formado em Direito, e foi empresário de sucesso na Viação Cometa, antes e mesmo durante a sua trajetória como dirigente esportivo. Abandonar antigos afazeres nunca fez parte da sua personalidade. Atleta das piscinas na juventude, jamais deixou de nadar e, já nonagenário, ainda cumpria uma rotina diária de 1.200 metros de natação no Country. Quando chegou à presidência da CBD, o Brasil vinha de duas Copas frustrantes – a de 1950, perdida em casa, e a de 1954, marcada pela desorganização da equipe nacional, dentro e fora de campo. Coube a um ?homem da natação?, como era visto no meio esportivo, levar o Brasil à sua época de ouro, apresentando ao mundo a geração que marcou o futebol do país como o mais respeitado no planeta.

– Disseram que eu não entendia nada de futebol, o que deve ter sido muito bom, pois foi comigo na CBD que ganhamos a primeira Copa do Mundo – afirmou ele na entrevista ao jornalista João Máximo, no fim de 2009.

Em 1971, com o Brasil já tricampeão mundial, Havelange foi indicado por unanimidade, em congresso da Conmebol, como candidato à presidência da Fifa, na eleição que se realizaria três anos depois. Stanley Rous, presidente desde 1961, era candidato à reeleição. Mesmo tendo ?pavor de voar?, como revelaria a O GLOBO, aceitou o desafio de visitar 86 países em dois anos e meio. Fotografava os delegados que tinham direito a voto para memorizar suas fisionomias e evitar gafes que poderiam comprometer sua campanha. Derrotou sir Stanley Rous por 62 votos a 56.

– Estudamos todas as possibilidades de voto, os da Europa e os dos outros continentes. Não tínhamos chance entre os europeus ocidentais, mas poderíamos conquistar a maioria nos países do bloco comunista, das Américas, da África, todos fora da influência da Inglaterra.

Encontrou uma Fifa administrada quase como uma empresa de fundo de quintal. Secretário-geral de Rous por mais de 20 anos, Helmut Kasser vivia com a família no segundo andar da sede. Havelange profissionalizou a gestão da entidade: uma de suas primeiras providências foi adquirar uma casa ?digna do secretário-geral da Fifa? para Kasser. O brasileiro adotou um sistema de patrocínio para a menina dos olhos da Fifa, a Copa do Mundo, que tornou a entidade forte economicamente, com condições para se sustentar mesmo que viesse a sofrer um baque como o da década de 40, quando a Segunda Guerra Mundial impediu a realização de duas edições do Mundial (1942 e 1946). Com dinheiro em caixa, Havelange passou a tocar outro projeto: a globalização do futebol. E a expansão também para outros segmentos: em 1977 foi realizado o primeiro Mundial Sub-20, e em 1985 nasceu o Mundial Sub-17. As mulheres também passaram a ter a sua Copa do Mundo quadrienal, a partir de 1991, e hoje elas já contam com versões Sub-20 e Sub-17, como os homens. A Fifa também levou cursos de técnicos, de árbitros, de gestores, para países do mundo inteiro, especialmente os de futebol profissional menos desenvolvido, além da criação de escolinhas e até programas socioculturais.

Mesmo se tornando um ?homem do futebol?, Havelange nunca esqueceu dos esportes olímpicos. Era um sonho do pai de Havelange que o filho disputasse as Olimpíadas, mas ele morreu dois anos antes dos Jogos de Berlim. Décadas depois, colaborou decisivamente para levar para a cidade que o pai belga adotou como sua os Jogos de 2016. E nunca escondeu o otimismo com o sucesso carioca como anfitrião da festa do esporte.

– O Jogos Olímpicos, aqui, vão tornar o país mais conhecido. Vamos ser mais respeitados, como esportistas e como brasileiros. É do interesse do governo investir neles. E os patrocinadores, tratando-se de vários esportes em vez de apenas um, vão aparecer – comentou em 2009.

Na entrevista a O GLOBO, Havelange explicou o argumento que usou para convencer o COI em Copenhague, no congresso que escolheu o Rio como sede para 2016:

– Lembrei aos congressistas que, em 2014, o Brasil fará 100 anos como filiado ao COI. “Os senhores, eu lhes disse, nunca nos deram nada. Nem ao Brasil, nem à América do Sul. Por que não dar ao Rio os Jogos Olímpicos de 2016?”