
Os temas em torno da identidade nacional e da segurança interna e externa se tornaram prioritários na agenda eleitoral, favorecendo as forças políticas representadas por um conservadorismo mais radical e pela extrema-direita. Na opinião de analistas, os atentados indiretamente aceleraram, ampliaram e reforçaram o ?processo de direitização? que já vinha progredindo na França. Se as urnas decidissem hoje o próximo ocupante do Palácio do Eliseu, o segundo turno seria, segundo as sondagens, entre Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional (FN), e o candidato vencedor das eleições primárias da direita tradicional, em que os favoritos são o ex-presidente Nicolas Sarkozy e Alain Juppé.
ARQUIVO BIOMÉTRICO
Além das costumeiras preocupações com desemprego, impostos e custo de vida, ganharam importância discussões sobre um controle mais rígido das fronteiras, a renegociação do Espaço de Schengen (a zona de livre circulação na Europa) e uma maior vigilância dos indivíduos fichados como suspeitos de radicalização islâmica. Há o temor onipresente de que terroristas potenciais se misturem aos refugiados que deixam zonas de conflito e desembarcam diariamente no país. A mais recente polêmica envolve a criação de um mega-arquivo nacional reunindo os dados pessoais e biométricos de 60 milhões de franceses, denunciado por defensores das liberdades públicas.
Pascal Boniface, diretor do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), ressalta que os três atentados ocorridos em um ano e meio marcaram fortemente a sociedade francesa, mas não suscitaram ?movimentos de ódio ou de acerto de contas entre as comunidades?:
? É certo que há um deslocamento à direita da sociedade francesa, e também que a extrema-direita se enraíza na paisagem do país. Uma parte da direita tentou recuperar o discurso da extrema-direita sobre o Islã e os muçulmanos, e há, inclusive, tentações deste tipo no seio do Partido Socialista (PS).
Especialista no estudo dos partidos políticos e dos processos de politização, a analista Florence Haegel aponta um ?paradoxo similar?. Ela cita o último relatório da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos (CNCDH) sobre racismo, antissemitismo e xenofobia, que registra aumento da tolerância em 2015, consequência também do choque emocional deflagrado pelos atentados.
? Por outro lado, se nota a importância no debate político francês das questões de identidade e de segurança. Não é algo novo, são temas discutidos há muito tempo pela FN, partido que cresceu nos últimos anos, mas foi reforçado pelos atentados. E vemos igualmente que a esquerda tem dificuldade em propor temas alternativos, e acaba nestes mesmos debates.
Nada prova que o resultado da mesma pesquisa confirme a tendência tolerante neste ano de 2016. A partir da ação terrorista de Nice, em 14 de julho passado, houve uma politização dos atentados, afirmam especialistas.
? É um pouco natural um primeiro momento de união nacional e, depois, a emergência de conflitos e divergências nos debates políticos ? diz Haegel. ? Além disso, Nice não é Paris, cidade dirigida por uma prefeita de esquerda (Anne Hidalgo), mas uma localidade em que o voto da FN é elevado, com direita forte.
Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), os atentados produziram efeitos contrastantes na aprovação presidente François Hollande, que avançou logo após o ?Charlie Hebdo?, mas despencou nos meses seguintes:
? Ninguém contesta que ele combate o terrorismo, mas os atentados reforçaram o sentimento por parte de certos eleitores de que havia um problema na função executiva. E isso tudo fortalece Le Pen.
INFLUÊNCIA DE TRUMP
Hollande tem batido recordes negativos de popularidade nas pesquisas. A seis meses de um pleito presidencial, nunca um chefe da nação registrou índices tão baixos, de 4% a não mais de 15%.
? Com ou sem Hollande, será muito difícil para a esquerda, porque ela está dividida. No contexto atual, com uma direita muito forte, me parece improvável que a esquerda chegue ao segundo turno em 2017 ? prevê Cautrès.
Os franceses têm igualmente demonstrado desconfiança com o sistema democrático. A maioria (57%) estima que a democracia funciona mal hoje, de acordo uma sondagem encomendada pelo jornal ?Le Monde?.
? Há um sentimento de fratura nas democracias enraizadas ? analisa Pascal Boniface. ? E há este sentimento de insegurança, com as guerras civis e os refugiados, mais o terrorismo e a incerteza econômica. Enfim, tudo leva a um desencanto dos franceses, em particular, e dos europeus, em geral.
Para Florence Haegel, a vitória de Donald Trump nos EUA poderá ter consequências opostas no pleito francês: impulsionar o voto em Le Pen ou estimular a mobilização contra a extrema-direita.
? Não sei em que sentido será esta influência.
Já Bruno Cautrès vê importante déficit de credibilidade da democracia no país:
? Instituições, partidos e políticos têm perda de confiança elevada. Muitos eleitores sentem que a democracia é uma bela ideia, mas não consegue mais garantir segurança e prosperidade. E os atentados têm seu papel nisso também.