PARATY ? Em tempos de redes sociais, explosões de selfies e disputas por “likes”, a compreensão do exibicionismo na construção da subjetividade contemporânea é um processo que merece ser analisado com atenção. Não à toa, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) reservou espaço para esse debate na tarde desta sexta-feira. Na aplaudidíssima mesa “O show do eu”, o psicanalista Christian Dunker e a professora Paula Sibília falaram sobre a crise de instituições tradicionais diante do narcisismo moderno, o enclausuramento em “condomínios” de pensamentos e gostos em comum, e elogiaram o movimento de ocupações nas escolas.
Professora da Universidade Federal Fluminense, Paula Sibília atua nos campos da comunicação e da antropologia. Seu ensaio mais famoso, “O Show do eu: a intimidade como espetáculo”, que foi relançado na Flip, foi a base para o debate. Em seu livro, a professora descreve a transformação da subjetividade contemporânea, em que o eixo do eu interiorizado é deslocado e afirmado através do olhar do outro.
? A partir dos anos 60 e 70, as mudanças começaram a se consolidar; e vieram com mais intensidade na virada para o século XXI. Nesse processo, o olhar do outro se tornou mais importante para a construção da identidade do homem. Hoje, vivemos na sociedade do espetáculo, em que exibimos nosso hábito, nosso pensamento, nosso gosto, mas com uma curadoria. Vendemos uma imagem de felicidade e sucesso. A nossa existência está baseada na visibilidade; nos afirmamos através do olhar exterior e não mais pelo nosso eu interiorizado ? explicou Paula.
Numa realidade de conexões em tempo real, com ferramentas que permitem até o autodidatismo, e inserida no modelo de sociedade em que a autoafirmação constrói a identidade das crianças, instituições como a escola, que tenta nivelar todos alunos como jovens iguais sem especificidades e não acompanha o desenvolvimento tecnológico e de relações, entram em crise. Em “Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão” (Contraponto), Paula analisa esse contexto.
? A subjetividade mudou, os valores mudaram. Agora que estamos todos conectados, estar na escola não é uma situação mais tão natural. A escola moderna está em crise. A sua normatização ocorreu no consenso sobre os regulamentos, como acordar cedo, sentar à mesa e ouvir o professor falar. Hoje em dia essas leis são colocadas em dúvida pelos alunos, principalmente, mas também pelos pais.
Neste âmbito, Christian Dunker elogiou o movimento de ocupação das escolas, iniciado, no Brasil, por São Paulo, e que já se alastrou por diversas cidades, inclusive Paraty. Paula também destacou o momento de questionamento proporcionado pelos jovens e disse que a sociedade precisa ouvir e procurar soluções para as demandas.
? Para a psicanálise, a ocupação é uma figura do desejo. Ao ocuparem as escolas, os alunos mostram que não querem mais o modelo atual. Eles estão tentando reinventar o formato de educação ? disse Dunker, professor da USP e autor de “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica” (Annablume), que ganhou o prêmio Jabuti em 2012.
Ainda sobre o público infanto-juvenil, os palestrantes falaram sobre o excessivo uso de remédios, numa tentativa de melhorar o rendimento nos estudos, por exemplo, e evitar desvios comportamentais.
? Estamos silenciando nossas crianças ? disse Dunker, que lembrou que o Brasil é um dos maiores consumidores de Ritalina do mundo. ? Crescer é passar por conflitos, é se reformular e não permanecer a imagem perfeita que projetamos nas crianças. Claro que esse excesso de medicação é um sintoma geral do capitalismo, mas tem uma especificidade brasileira que precisamos tratar.
Paula classificou o uso excessivo de remédios como busca pela “solução técnica”. Tal fenômeno, diz, é facilitado pelo esvaziamento da interioridade, o que torna a subjetividade vulnerável diante de qualquer crise.
? Produzimos muitas angústias contemporâneas e sofrimentos novos. E o mercado aproveita, oferecendo supostas soluções. Assim, continuamos nos drogando e consumindo.
Ampliando o conceito do narcisismo moderno, Dunker propõe uma especificidade brasileira, ao falar da formação de condomínios, que nos separam da figura temida e desconhecida do outro e nos aglutinam entre pensamentos semelhantes.
? A novidade desse narcisismo é que em vez de enfrentar a diversidade, nós diminuímos o valor do mundo e só lidamos com gente como a gente. Assim, esse show do eu entre iguais resolveria nossos conflitos. Só lemos o que queremos e nos relacionamos com pessoas que pensam igual a nós ? explicou o psicanalista, em alusão também às redes sociais ? existem os muros físicos, de fato, mas também os condomínios virtuais. O Facebook vira um palco de aplausos de discursos para um público do mesmo nicho.
Fazendo um paralelo com a política e com a crise de representatividade, Dunker destacou a ascensão da figura do síndico, que administra o condomínio de acordo com as preferências dos condôminos, com leis adaptadas. Em uma referência ao presidente interino Michel Temer, o psicanalista disse que hoje os “brasileiros tiram um síndico e colocam outro no lugar quando não estão satisfeitos”, para aplausos entusiasmados da plateia.
? Há uma insatisfação com a representação, porque você vota em alguém e depois ele não te dá mais satisfação. O sistema atual é baseado na falsidade.
Por fim, Paula Sibília, numa visão otimista, afirmou que o momento atual do país é bom para que a sociedade questione o sistema, os valores e problematize as relações humanas e a interação com as redes sociais.
? Em algum momento, a ação de aprender, que é uma das mais belas no mundo, tornou-se tediosa. O lado bom é que estamos num momento de questionamento. Temos que ouvir as demandas e buscas soluções.