RIO – Ao longo dos últimos cinco anos, o nome de Sampha Sisay foi saindo do círculo de
iniciados do pop eletrônico (aqueles que, por exemplo, deixaram-se seduzir por
sua voz fora do comum em ?Trials of the past?, faixa do álbum de estreia do
projeto SBTKRT, de 2011) e chegando ao povo em geral, por suas participações,
por pequenas que fossem, em discos de celebridades como Kanye West, Drake, Frank
Ocean e das irmãs Beyoncé e Solange. Antes de correr o perigo de consagrar-se
como um coadjuvante de luxo, o londrino de 27 anos reaparece agora com
?Process?, o seu álbum de estreia. Mostruário não apenas dos seus dotes vocais,
o disco apresenta um artista completo, que toca, compõe, produz e que faz, com
entrega emocional, a música de 2017.
O PIANO COMO CONFIDENTE
Com 10 canções apenas (a medida
ideal para os tradicionais LPs), ?Process? é cheio de delicados sons acústicos
tecidos pelos mais modernos processos eletrônicos aos mais sintéticos ? como nos
discos de James Blake ou no mais recente de Bon Iver, embora sem tantas
manipulações de voz. O canto de Sampha é hipnótico o suficiente mesmo sem
efeitos ? como o do conterrâneo/contemporâneo Benjamin Clementine, artista que
também faz do piano o seu instrumento principal. Não à toa, uma das melhores
músicas do disco é ?(No one knows me) like the piano?, uma balada digna de
Carole King, em que Sampha conta da infância passada em casa entre as teclas
pretas e brancas, as suas confidentes.
Representante de um tipo de música
eletrônica cheia de alma (ou de um r&b cujo DNA foi destroçado e deu origem
a formas inconcebíveis), o cantor usa da liberdade para seguir esta faixa com
uma bela construção pianística e vocal (?Take me inside?), que será invadida sem
cerimônia por delírios de sintetizadores e se transmutará em outra canção, outra
faixa (?Reverse faults?).
Produzido por Sampha com Rodaidh McDonald (que copilota o último álbum da
banda The xx, ?I see you?), ?Process? vai bem adiante do que o cantor fez em
seus dois EPs (?Sundanza?, de 2010; e ?Dual?, de 2013). A sofisticação se faz
evidente na faixa de abertura, ?Plastic 100°C?, em que ele se abre sobre o
incômodo dos novos tempos de reconhecimento (?Lente de aumento sobre o meu
rosto/ É tão quente que eu estou derretendo aqui?). Tudo é muito pessoal no
disco. A mãe do cantor, que morreu em 2015 de câncer (a mesma doença que levou o
pai em 1998 e que se manifestou na sua própria garganta há poucos anos) é o tema
de ?Kora sings?. Entre plácidos sons de kora (instrumento africano de cordas) e
beats vigorosos, Sampha canta: ?Uma mãe precisa dos seus filhos / Oh, ela
precisa deles por perto?. E implora: ?Por favor, não desapareça!?
?Process? traduz musicalmente um vasto espectro de emoções. A mais dançante
das suas faixas, ?Blood on me?, é repleta de paranoia, de delírios
persecutórios, em um pacote sonoro com piano dramático, batidas quebradas e uma
linha de baixo sintetizada daquelas que pouco se ouviu desde os anos 1980. É
meio como se o Talk Talk, um dos mais insólitos grupos do pop britânico daquela
década, tivesse levado suas experiências para o lado do pop negro americano.
Um pouco de perversidade (?vejo
você manipular seu amante?) reveste ?Under?, daquelas músicas que conectam
Sampha com os antecessores do Massive Attack, mestres em conjugar luz e trevas.
Já ?Incomplete kisses? indica uma possível inserção no mercado mais amplo do
pop, com suas melodias vocais bonitas e batidas contidas, quase como um Boyz II
Men da nova era. Mas a estranheza volta para fazer a sua parte, com toques
orientais, em ?Timmy?s prayer?, faixa na qual Sampha divide a autoria com Kanye
West. A travessia de ?Process? se encerra com ?What shouldn?t I be??, faixa
constituída basicamente de teclados e voz ? nada mais do que o cantor precisa
para abrir o coração e proporcionar fecho de ouro para um dos melhores álbuns de
estreia de um artista britânico em muitos anos.
Cotação: Ótimo