Tela: espelho da pressa, do silêncio e da desigualdade

Cascavel e Paraná - Não foi apenas o despertador que mudou de lugar; o próprio “bom dia” não tem hálito de hortelã, mas algum emoji ou figurinha cômica enviado com os olhos entreabertos. Os mesmos olhos que encontram a mesma tela, horas depois, antes de se fecharem para os sonhos e para o descanso noturno. Os controversos áudios são os “novos bilhetes” sobre a mesa, porque mesmo a infância se tornou digital antes de ser vivida – sendo que os próprios adultos estão tentando aprender a lidar com isso.

São adultos analógicos atravessados pela defasagem do aprendizado que nunca foi política pública e que reproduz antigas desigualdades em um novo cenário. Daí surge a necessidade de compreender e agir criticamente no mundo online (ir além dos haters), entendendo os riscos, as lógicas de vigilância e as armadilhas simbólicas que moldam as relações também “em nuvens”. Isso depende do que se chama de “letramento digital”, o qual não foi aprendido de forma coletiva e, como outras formas de cuidado, foi empurrado para dentro de casa – de onde não pode ser varrido para debaixo do tapete.

Esse mundo “à parte” não é um espaço neutro e universal, mas a extensão das estruturas que organizam o mundo físico. Assim, o digital tem cor, gênero e CEP. Na periferia, por exemplo, o mesmo pacote de dados deve servir para o pix, o trabalho remoto, a tarefa escolar e as tentativas no TikTok, sendo que nem sempre há aplicativo de controle parental ou cursos de robótica. Nesse caso, pode se viver a dependência digital sem qualquer rede de apoio, de modo que a conexão se dá sem proteção e sem orientação, apesar de o instrumento de entretenimento também ser de sobrevivência.

Nessas condições, o letramento digital é também uma forma de resistência. É o que impede o golpe do falso boleto, o vazamento de dados, o abuso online. Mas, sem política pública que o sustente, ele se torna mais um privilégio restrito a quem pode pagar – como o próprio acesso à linguagem jurídica. E quem de fato exerce esse controle dentro do lar? As discussões sobre os limites de tela, ainda que salutares, podem esbarrar na moralização e na sobrecarga de cuidado, especialmente materno.

O artigo 227 da Constituição Federal é claro: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente. Ocorre que, no campo digital, essa tríade se desfez: a família está exausta, a sociedade é desinformada e o Estado é omisso. O que está em jogo não é apenas o tempo de tela, mas quem tem o privilégio de escolher quando desligá-la.

Políticas de Conectividade e Cidadania Digital

O Brasil tem políticas de conectividade, mas não de letramento. Ensina-se a usar o dispositivo, mas não a pensar sobre o impacto ético, político e jurídico do seu uso. As escolas, sobrecarregadas, tentam lidar com o cyberbullying e as fake news sem formação adequada. Na prática, segue-se individualizando o problema da desigualdade, como se cidadania digital fosse uma questão de escolha ou disciplina.

O letramento digital deve ser um projeto coletivo que começa no lar, perpassa a escola e é sustentado pelo Poder Público, a fim de ensinar que estar conectado não é sinônimo de estar incluído. Mais do que proibir telas, é imprescindível aprender a olhar pra elas – um olhar que se aprende com diálogo, formação e cuidado.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito