OPINIÃO

O trabalho que é contabilizado como amor

O sistema contributivo do Estado de bem-estar social, calcado quase de modo exclusivo na proteção do trabalho formal, vai de encontro com uma discussão emergente sobre o tripé do direito ao cuidado: cuidar, ser cuidado e autocuidado. Até pouco tempo, pouco se refletia sobre a injustiça estrutural estabelecida nesse modelo naturalizado em que já se tem socialmente determinado quem prestará cada um desses papeis e que fica mais latente quando atravessado pela questão de deficiência.

Múltiplas camadas de opressões podem perpassar essa realidade, deixando a descoberto um custo que pode se tornar fardo para camadas sociais mais vulneráveis diante da inércia do Estado. Nesse sentido, desenvolveram-se prestações estatais para garantia de inclusão de pessoas com deficiência, a exemplo do Benefício de Prestação Continuada ou das Aposentadorias da Pessoa com Deficiência, o que avança na proteção jurídica de direitos de grupos com necessidades específicas. Contudo, não se havia considerado a contribuição do cuidado familiar, embora seja a infraestrutura preponderante na garantia da manutenção das pessoas com deficiência.

Assim, uma massa considerável de cuidadores informais (que podem ter se afastado da formalidade justamente para prestar o cuidado familiar) enfrenta o silêncio jurídico sobre a titularidade de direitos próprios. A dupla ou terceira jornada no mais das vezes não encontra respaldo legal, mesmo em situação de vulnerabilidade e na ausência de rede de apoio. Existem proteções assistenciais pontuais, mas de forma focalizada e precária, porque o trabalho de cuidado ainda é subestimado pela sociedade e sofre um profundo recorte de gênero e de raça, não sendo sequer considerado trabalho, mas mera responsabilidade inerente a alguns grupos. 

Essa invisibilidade institucional, em alguns países, já encontra mecanismos de supressão de lacuna, como a Argentina, com o reconhecimento de tempo de serviço assistencial para a aposentadoria, em que o tempo dedicado aos cuidados maternos possa integral o cálculo para fins de aposentadoria. É um tempo que não volta, mas que pode ser convertido em segurança futura, para não condenar os cuidadores à dupla perda. Afinal, o tempo também faz parte da economia, ainda que seja uma engrenagem silenciosa. No caso da maternidade atípica, esse dilema torna-se ainda mais agudo ao reunir as contradições estruturais de cuidado de forma mais intensa (jornadas permanentes, processos terapêuticos contínuos e, na maioria dos casos, uma atuação solitária das mães, que acumulam sozinhas o peso do tempo e da responsabilidade).

No Brasil, tem engatinhado projeto de lei para o auxílio para mãe atípica, independente de vínculo empregatício formal e que pode ser acumulado com outros benefícios, para a remuneração do cuidado em relação a crianças e adolescentes com Transtorno de Espectro Autista e outras deficiências graves que demandem atenção constante, comprovando-se que o cuidado afeta a rotina de trabalho remunerado. Ainda não se tornou lei, estando em debates legislativos, mas já nasce com lacunas ao desconsiderar pessoas maiores e que também dependem de cuidados e ao exigir uma comprovação médica sobre o impacto na atividade laborativa, sendo que isso é inerente à dupla ou tripla jornada.

Há, também, projeto de lei para aposentadoria especial para mães/cuidadoras, propondo-se a redução do tempo de contribuição em 05 anos. Porém, ainda não foi aprovado, uma vez que o ordenamento reconhece a pessoa com deficiência como sujeito de direitos especiais (o que é louvável), mas desconhece que a maternidade atípica pode ser uma atividade penosa e/ou insalubre, dado o desgaste físico e emocional.

Dessa forma, a maternidade atípica expõe de forma radical que aquilo que sustenta a vida e assegura a dignidade de pessoas em situação de maior vulnerabilidade permanece invisível no campo jurídico, sem reconhecimento material ou previdenciário. Se o tempo é o bem mais escasso na lógica capitalista, e se as mães atípicas doam tempo vital para manter seus filhos vivos e incluídos, ignorar esse esforço é perpetuar uma desigualdade de fundo. Sem um regime jurídico que converta esse tempo em direitos, a sociedade condena essas mulheres à exaustão e ao abandono, transformando o cuidado em uma sentença privada.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito