NOVA YORK ? Sexta maior economia do mundo, com um PIB de US$ 2,49 trilhões em 2015 ? à frente de França e Brasil ? a Califórnia saiu das eleições americanas ainda mais distante da América Profunda. O abismo entre a coalizão conservadora, que a partir de janeiro dominará todos os níveis de governo federal, e o estado com políticas mais progressistas da federação americana foi de tal modo esgarçado que uma exótica campanha pela independência explodiu nas redes sociais.
Não é a primeira vez na Califórnia que se fala em movimentos separatistas, mas nunca nenhum movimento realmente seguiu adiante, ou foi encarado com seriedade. Mas a ?Yes, California?, criada por um grupo de ativistas no ano passado, bombou no mundo digital, com a hashtag #Calexit, uma referência ao Brexit, à saída do Reino Unido da União Europeia, que recebeu o apoio financeiro de barões do Vale do Silício e a promessa de um deputado estadual democrata de levar a proposta de secessão ao voto popular em 2019.
? A divisão ideológica aumentou. A Califórnia está cada vez mais inclusiva, pró-imigrantes, preocupada com a preservação do meio ambiente, mais conectada com o restante do planeta do que com o centro da América ? ressalta o economista Kevin Klowden, diretor do Centro de Estudos da Califórnia do Instituto Milken.
Hillary Clinton teve uma vantagem de mais de 2,7 milhões de votos em relação a Donald Trump no estado. Os eleitores colocaram no Senado a democrata Kamala Harris, negra e simpatizante do movimento Black Lives Matter. A bancada na Câmara dos Representantes terá 39 democratas e apenas 13 republicanos. No Legislativo local, a diferença é ainda maior. E entre as propostas aprovadas em referendos na terça-feira estão a legalização da maconha para uso recreativo; maior taxação para refrigerantes e cigarros; restrições à compra de munição para armas de fogo; aumento de imposto de renda para os mais ricos; subsídio para atendimento hospitalar de crianças, idosos e famílias mais pobres; e a proibição da adoção de ensino exclusivo em inglês nas escolas públicas.
APOIO DE DEPUTADO E SENADOR
Mas o exercício de democracia direta que ilustra com mais precisão a distância da Califórnia do novo centro de poder dos EUA foi a autorização popular da regulamentação do financiamento de campanhas eleitorais no estado, em oposição direta à decisão da Suprema Corte, com maioria conservadora em 2010, quando caíram por terra os limites para corporações bancarem candidaturas. O resultado animou o presidente do Partido Democrata em Los Angeles, Eric Bauman, a pressionar legisladores por ?mais muros virtuais legais? para impedir a ingerência de Washington na política ambiental e em temas como aborto, casamento gay, sistema de saúde, criminalização de imigrantes não documentados e mesmo nos acordos comerciais do estado com países amigos. O presidente do Legislativo estadual, senador Kevin de León, e o deputado Anthony Randon divulgaram uma declaração conjunta sobre a vitória de Trump que colocou ainda mais lenha na fogueira separatista: ?O resultado das eleições é inconsistente com os valores do povo da Califórnia, comprometido com uma sociedade democrática e pluralista. Os californianos rejeitaram em massa nas urnas uma política alimentada por ressentimento, racismo e misoginia.?
Com apenas três mil militantes entre 39 milhões de californianos, o #Calexit ganhou representatividade na semana passada nas redes sociais. Entre os comentários mais divertidos estão o que celebrou a legalização da maconha (?nossa criptonita anti-Trump?,) e o que conclamou os cidadãos a ?pegar nossos abacates e maconha e sair dos EUA?.
E, na quarta-feira, o #Calexit recebeu apoios significativos, de três investidores dispostos a financiar a aventura da independência: Shervin Pishevar, da Hyperloop One; Marc Hemeon, CEO da Design Inc.; e Dave Morin, da rede social Path. Porta-voz da ?Yes, California?, Marcus Ruiz Evans afirmou que a reação vitriólica à eleição de Trump o animou na busca do apoio econômico de lideranças do Vale do Silício para a aprovação de uma consulta popular nas eleições de em 2018, para a realização de um plebiscito sobre a secessão já em 2019, inspirado no modelo da Catalunha, na Espanha.
Mas o caminho da independência não depende apenas do voto popular. Após a Guerra de Secessão (1861-65), a Suprema Corte determinou que dois terços do Congresso e pelo menos 38 Assembleias Legislativas país afora precisam aprovar a saída de um estado da federação, tarefa quase impossível. Do outro lado do espectro político, o Texas foi o último estado a namorar com a ideia, durante a era Obama, quando o Tea Party ? ala mais à direita no Partido Republicano ? reergueu a bandeira da República do Texas, independente por quase dez anos, entre 1836, quando se separou do México, até 1846, quando se juntou aos EUA.
?NÃO ACREDITO NA SECESSÃO?
A própria Califórnia já foi independente, durante 25 dias, numa revolta de imigrantes americanos contra o México em 1846. O símbolo dos rebeldes, um urso, ilustra a bandeira do estado, com os dizeres ?República da Califórnia?. Mas uma rápida conferida no mapa eleitoral do estado mostra que ele não difere tanto assim do restante dos EUA. Enquanto o Vale do Silício e as áreas urbanas, de frente para o Pacífico, votam em peso nos democratas, o cinturão rural é reduto republicano. E o argumento de que Trump é um líder exótico, sem experiência política, fragiliza-se ao se lembrar da unção popular a Arnold Schwarzenegger para o governo local, por dois termos consecutivos, entre 2003 e 2011.
? Embora o ator jamais tenha se pautado pela xenofobia ou misoginia, fica a imagem de que o restante do país está uma década atrasado. Não acredito no sucesso do movimento de secessão, mas ele cristaliza a percepção local de que a vanguarda da sociedade civil americana está aqui, enquanto o centro do país segue preso a um conservadorismo sem espaço na Nova Califórnia ? conclui Klowden, usando, sem querer, o nome escolhido pelos militantes do #Calexit para seu utópico futuro país.