RIO ? O enredo “Só com a ajuda do santo” foi o escolhido pela campeã Mangueira para este carnaval e rendeu um dos melhores sambas do ano, que versa sobre a religiosidade do povo brasileiro. Ao compor o hino, os compositores Lequinho, Júnior Fionda, Flavinho Horta, Gabriel Martins e Igor Leal, versando sobre santidades diversas, conseguiram dar à canção a levada raçuda característica da escola. No anual show de verão da verde-e-rosa, na noite desta terça-feira, no Vivo Rio, a religião também pautou os artistas, mas com um efeito menos sacolejante. Faltou um pouco de samba, mas nomes como Alcione, Chico Buarque, Maria Bethânia, Fernanda Abreu e Elba Ramalho ganharam aplausos, gritinhos e carinhos sem ter fim do povo que lotou a casa. Links
Homenageada no desfile campeão de 2016, Bethânia abriu a noite e, logo ela, tão devota, não mergulhou muito no oceano divino, com canções como “Emoções”, de Roberto Carlos, e “Reconvexo”, do mano Caetano (que, vá lá, até fala na “novena de Dona Canô); ela recebeu o puxador da Mangueira, Ciganerey, e ritmistas para lembrar o belo samba de 2016, “A menina dos olhos de Oyá”, no momento mais roots da noite, a que se seguiram os mangueirenses históricos Tantinho e Leci Brandão, que, se não cantaram sambas tão conhecidos do público, certamente permaneceram no gênero, para aplausos gerais (sem gritinhos).
Leci entregou a tocha a Fafá de Belém, animada e carismática como sempre (embora algo rouca), mandar de chapa “O sol nascerá”, de Cartola, passar por uma oração e chegar a talvez a melhor união de samba com Deus: “O Círio de Nazaré”, clássico samba-enredo da Unidos de São Carlos de 1975 (reeditado pela Viradouro em 2004), que permitiu a Maria de Fátima, esperta, falar ainda de seu Pará natal e suas delícias: “Tem pato no tucupi, muçuã e tacacá/ Maniçoba e tucumã, açaí e aluá”. Fafá chamou Rosemary, atração fixa da noitada mangueirense ano após ano, que investiu muito na religião e pouco no samba, com os clássicos robertoeerasmianos “Nossa senhora” e “Jesus Cristo”. Para compensar, Sombrinha veio em seguida e professou um outro tipo de religião, ao cantar “Malandro sou eu” e “A volta do malandro”. Tolerância religiosa explícita no palco do Vivo Rio, que cresceu ainda mais com a chegada da baiana Mariene de Castro, que lembrou que “Oxóssi reina de norte a sul”.
Fernanda Abreu veio em seguida, com um moderno boné-cocar nas cores da escola e seu samba-funk, que desembocou em Jackson do Pandeiro quando ela cantou “Jack Soul brasileiro” e chamou Elba Ramalho e o clássico nordestino “Sebastiana”; Elba, que assim como Fafá, não esconde seu catolicismo, lembrou a “Oração de São Francisco” antes de cair num medley de forró (São Luiz Gonzaga, ué) e chamar aquele para quem velas são acesas há 50 anos, Chico Buarque.
Sorridente em seu terno branco, Chico teve problemas com o andamento (pareceu achar a banda lenta demais) e demorou a começar “O que será” (bem poderia ter sido “Cálice”), caindo depois no adorável “Samba do grande amor” e na favorita da mulherada presente, “O meu amor”, em que a cinderela Alcione foi a escolhida. Em casa, a Marrom, que tinha o público nas mãos e a voz em forma, perdeu a oportunidade de se consagrar ao ser mais uma a passear pelas músicas religiosas. Ciganerey, passistas, mestre-sala, porta-bandeira e ritmistas encerraram a noitada com o samba de 2017 e clássicos da Mangueira, lembrando que religião de sambista, afinal, é samba, e que o carnaval, inexoravelmente, chegou.