Cotidiano

Direitos e deveres na delação premiada

Direitos e deveres na delação premiada

Fernanda Tórtima

Fernanda Tórtima é advogada de defesa de Eduardo Cunha e Sérgio Machado

Oinstituto da colaboração premiada no Brasil e no mundo veio para ficar. Se isso importa em avanço, pelo incremento de provas em investigações e processos, ou retrocesso, em razão de eventuais violações a garantias fundamentais decorrentes de sua aplicação, não será aqui o objeto. Fato é que a colaboração premiada não se encontra suficientemente regulamentada pelas normas que a instituíram nem ainda adequadamente delimitada pela jurisprudência, circunstância que certamente vem gerando numerosos erros de interpretação, notadamente sobre os deveres e direitos dos colaboradores.

Não raro, por exemplo, publicam-se matérias e opiniões aventando a hipótese de revogação de acordos celebrados em razão de não ter o colaborador logrado comprovar suas declarações. Nada mais absurdo. Como se sabe, ou se deveria saber, o colaborador tem apenas o dever de dizer a verdade, o que compreende a obrigação de não omitir fatos de que tenha conhecimento, ainda que não tenha como comprová-los.

Cabe ao Ministério Público, quando negocia e celebra o acordo, avaliar o potencial do relato e dos dados de corroboração oferecidos pelo colaborador para eventual persecução penal em desfavor dos delatados. E, uma vez celebrado e homologado o acordo com base nesse conjunto de relatos e dados, o colaborador perde os benefícios dele decorrentes apenas se violar uma de suas cláusulas, dentre as quais se encontra a que o obriga a não mentir e a não omitir informações que envolvam a prática de crimes.

Se assim não fosse, o colaborador correria o risco de perder os benefícios acordados caso os órgãos responsáveis pela persecução penal se omitissem na tomada de medidas investigativas, deixando de realizar diligências capazes de comprovar o relato do colaborador. Muitas dessas diligências não podem, de resto, ser efetuadas por particulares, a exemplo do afastamento de sigilos constitucionalmente protegidos.

Não há dúvida: o colaborador somente perde os benefícios constantes do acordo celebrado se as investigações posteriores demonstrarem que ele mentiu ou omitiu fatos dos quais tinha conhecimento. Se fosse diferente, haveria verdadeira privatização da atividade investigativa, que deve permanecer a cargo das autoridades competentes.

Outro equívoco que vem ganhando espaço na mídia é a alegação de irregularidade na concessão de cumprimento da pena em regime domiciliar. Não se pode perder de vista que réus colaboradores, em geral, suportam ônus significativos ao celebrar acordo, não apenas aqueles expressamente previstos, como o pagamento de multas, alguma restrição à sua liberdade e renúncia ao direito de defesa, mas também outros indiretos, como o ostracismo social que lhe será indefinidamente imposto, além do evidente risco de retaliação, que pode atingir a sua própria integridade física e a de sua família. Parece claro que investigados em procedimentos penais apenas aceitarão tais ônus em troca de premiação adequada, o que pode incluir a prisão em regime domiciliar, não cabendo a quem propõe o benefício, por óbvio, fiscalizar ou restringir o nível de conforto do domicílio do colaborador.

No Direito americano, por exemplo, além da obrigação do pagamento de pesadas multas, não poucas vezes se oferece, em evidente benefício daquele que celebra acordo de confissão ou de colaboração com o Ministério Público, o deferred prosecution agreement (DPA). Por ele, fica suspensa a aplicação de pena privativa de liberdade por determinado período, ao fim do qual ? se o réu tiver cumprido as suas obrigações sem voltar a delinquir ? é extinta a sua punibilidade, sem que tenha ele ficado um único dia preso, mesmo em casa.

A legislação brasileira deixou boa margem de discricionariedade para a negociação do acordo de colaboração, cabendo às partes que o celebrarem levar a homologação proposta que contemple as suas expectativas. Em instituto cuja tônica é o pragmatismo, o espaço para os dogmas não deve ir além do necessário para assegurar um procedimento honesto e previsível.