Cotidiano

Vladimir Carvalho refaz em documentário trajetória de Cícero Dias

RIO ? Há filmes que se apresentam ao diretor repentinamente, fruto de um lampejo; outros demoram tempo para germinar, às vezes uma vida inteira. Pode-se dizer que ?Cícero Dias, o compadre de Picasso?, documentário de Vladimir Carvalho que entra em circuito comercial na próxima quinta-feira, dia 3, em São Paulo, Rio, Brasília e Curitiba, é um desses filmes que nasceram do acaso, mas cuja semente já fora plantada muito tempo antes.

O ano do acaso é 2005, quando o cineasta viajava a Paris, para exibir seus documentários na programação do Ano do Brasil na França. Na revista de bordo da companhia aérea, viu que a cidade abrigava uma retrospectiva de Cícero Dias (1907-2003). Ele estava justamente concluindo um documentário sobre José Lins do Rego, ?O engenho de Zé Lins?, e conta que, aqui e ali, havia algo relativo a Cícero na pesquisa ? o pintor, nascido em Escada, interior de Pernambuco, também fora criado num engenho, Jundiá, cenário de suas primeiras obras. Na exposição, o cineasta acabou conhecendo o marchand e colecionador romeno Jean Boghici (1928-2015), radicado no Rio, e o entrevistou sobre Cícero. Boghici, por sua vez, o apresentou a Raymonde e a Sylvia, viúva e filha do artista, que o convidaram a visitar o ateliê do pintor, intocado nos dois anos que se seguiram à sua morte. Também elas tiveram seus depoimentos colhidos.

O acaso iniciado no avião se cruza com uma memória antiga de Carvalho, datada de 1948. Cícero fazia sua primeira exposição no Recife, depois de dez anos no exterior, a maior parte do tempo em Paris.

? Eu tinha 13, 14 anos, e me lembro com nitidez da defesa intransigente que meu pai fazia do pintor, atacado por forças conservadoras que não perdoavam aquele figurativismo que caminhava para a abstração ? conta Carvalho. ? Aquilo me marcou bastante.

A terceira data é recente:

? Quando foi 2013, 2014, dei uma examinada naquele material de 2005 e me surpreendi: ?Poxa, tenho isso aqui? ? conta ele. ? Fazer esse filme foi mesmo uma opção inevitável. Cícero para mim sempre foi um dos protagonistas daquele momento de fecunda transição que partiu da Semana de Arte Moderna de 22. O Brasil ansiava por uma transformação, o novo surgia como categoria filosófica, contra toda sorte de preconceito e velharia.

Para Carvalho, autor de documentários emblemáticos do cinema brasileiro, como ?O país de São Saruê? (1971) e ?Conterrâneos velhos de guerra? (1991), essa trajetória pessoal de Cícero, da qualidade onírica e do lirismo desenfreado dos anos 1920 ao figurativo beirando o abstracionismo, se constitui na INFOCHPDPICT000062338826espinha dorsal do filme.

Para contemplar o percurso, fez novas entrevistas. Há, por exemplo, depoimentos do ceramista Francisco Brennand, do dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014) e do crítico de arte Frederico Morais, entre outros. O documentário segue Cícero em sua mudança para o Rio, em 1928, onde estudou na Escola Nacional de Belas Artes, e sua ida para Paris em 1937, estimulado por Di Cavalcanti, que já se encontrava na cidade. Lá, foi imediatamente acolhido pela cena artística local, por nomes como Picasso, de quem se tornaria amigo e compadre ? o artista catalão era padrinho de sua filha (daí o título do filme). Brennand conta, em seu depoimento, que o telefone de Picasso na lista telefônica era em nome de Cícero, para que Picasso, já famoso então, não fosse importunado por curiosos.

MURAL ?EU VI O MUNDO…? NA FAZENDA DE ALMEIDA BRAGA

No filme também é possível ver a pintura de 12 metros ?Eu vi o mundo… Ele começava no Recife? (1926-1929) em sua morada permanente, a fazenda no interior do Rio do colecionador Luiz Antonio de Almeida Braga. A obra causou escândalo na Exposição Nacional de Artes Plásticas de 1931. Carvalho também incluiu em sua produção excertos de uma entrevista inédita com Cícero Dias, feita pela produtora Daniella Hoover, que se tornou coprodutora do filme.

? Se você não for insistente, às vezes até chatinho, se metendo pela vida afora, não encontra as coisas ? comenta ele. ? Eu achava, por exemplo, que como Brennand era mais novo do que Cícero, não teria um repertório sobre ele. Mas ele conheceu bastante o artista, que o apadrinhou, e acabou contando boas histórias.

Com ?Cícero Dias?, que recebeu os prêmios de roteiro e direção no Festival de Brasília, o cineasta completa, sem que tenha sido essa sua intenção, uma trilogia de grandes nomes da cultura nordestina ? os outros títulos são ?O homem de areia? (1982), sobre o escritor José Américo de Almeida, e ?O engenho de Zé Lins? (2006). A partir de uma fala de Raymonde, que conta ter levado a filha e os netos para conhecer o engenho onde seu marido nascera e vivera a primeira parte de sua vida, Carvalho também foi a Jundiá, numa espécie de encerramento da trajetória de vida do artista. Ficou chocado com o que viu, como o próprio Cícero ficara, segundo o relato da sua viúva.

? A memória brasileira é esquecida, maltratada. Ali era para ser um centro cultural, Escada fica a apenas uma hora do Recife. Mas virou uma ruína ? lamenta o documentarista, ele mesmo especialista em preservar, no cinema, parte da memória do país.