Cotidiano

Quinze anos após estreia, 'Lavoura arcaica' dialoga com discussões atuais

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RIO – Não foi o diretor Luiz Fernando Carvalho, mas Adel Bakkour e Tulin Al-Hashemi que apresentaram ?Lavoura arcaica?, exibido anteontem no Estação Net Botafogo, em homenagem do Festival do Rio, 15 anos depois do lançamento do filme. Adel partiu de Aleppo há quatro anos, Tulin saiu de Damasco há dois. Deixaram sua Síria natal em guerra e vieram recriar a vida do outro lado do mundo.

?Lavoura arcaica? tem uma estrutura mítica, atemporal, com personagens arquetípicos: o pai que oprime pela palavra e pelo chicote, a mãe que toca com afeto, o filho primogênito a repetir a figura paterna, o filho torto, as irmãs que se calam. Apesar de referências à língua e a tradições árabes, não se sabe que é uma família de libaneses no interior de São Paulo, nos anos 1940. A adaptação do romance de Raduan Nassar poderia se passar em qualquer lugar, em qualquer tempo. É a universalidade do mito que faz pensar na pertinência de Adel e Tulin apresentarem o filme.

Em ?Lavoura arcaica?, a fazenda é o único mundo possível, onde todo pão que se come foi ali mesmo produzido. É um templo onde os sermões são dados pelo pai antes das refeições. Os filhos ouvem silenciosos e devem obedecer, sem que haja espaço para a singularidade. ?O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio?, diz o pai. André destoa dos irmãos ao esconder-se na mata, enterrando os pés na terra e cobrindo-se com folhas secas. Abre o portão da fazenda, abandona a família, mas permanece só e angustiado. Ao retornar, depois de falar do desejo que não cabe na escuta do pai, diz que volta para casa ?humilde e submisso?. Não é trivial abandonar o que é familiar, ainda que seja causa de opressão.

O refugiado também deixa para trás tudo o que lhe é familiar mas o massacra, na maioria das vezes sem retorno possível. Costuma-se dizer que ele não tem escolha. Ele tem a escolha, sim, de permanecer onde há opressão em vez de se lançar ao desconhecido. Há quem prefira conviver com a violência, mas ficar na fazenda onde se conhece o terreno. Há quem não aguente ser oprimido em sua própria casa. Trailer de ‘Lavoura arcaica’

A figura do refugiado volta à discussão política mais de meio século após sua definição como aquele que sofre perseguição política devido a raça, religião ou nacionalidade. É uma classificação que costuma colocá-lo no lugar de vítima, a precisar de proteção, mas sem ter voz. ?Corremos grande risco quando falamos?, André reconhece. E, como ele, o refugiado sai para poder falar. Quem abandona aquilo que lhe é próximo tem uma paixão maior que o mundo. Tem a urgência de tirar os sapatos para enterrar os pés na terra, correndo o risco de pisar em falso, de perder os pés.

Se é para continuar com os mitos, pode-se pensar no refugiado como o sujeito político por excelência, para além de qualquer definição jurídica, por apostar na vida em aberto não só diante da guerra, mas de toda sorte de violências estruturais. Em tempos nos quais a singularidade é quase afronta, num mundo cheio de vontade de encerrar-se entre portões, com medo da desordem, o refugiado é aquele que leva sua pulsão de vida às últimas consequências, aquele que, como o protagonista, quer ?ser profeta de sua própria história?.

*Especial para O GLOBO