Cotidiano

Knausgard encanta a plateia da Flip

PARATY – Em “Um outro amor” (Companhia das Letras), segundo volume do monumental romance autobiográfico “Minha luta”, de mais de três mil páginas, no qual Karl Ove Knausgard narra de maneira implacável sua trajetória, o autor afirma sentir embrulhos no estômago e tremores a cada entrevista ou palestra de que participa. Mas essa aversão ao holofote não pôde ser vista pela plateia presente na abarrotada Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) no fim da tarde desta sexta. Vestido com um terno marrom claro sem gravata, o alto e elegante escritor norueguês, um dos nomes mais aguardados da programação, conquistou o público durante o bate-papo com o jornalista e tradutor Ángell Guerría-Quintana, iniciado com uma leitura da edição inglesa de trecho do recém-lançado “Uma temporada no escuro” (Companhia das Letras), quarto livro da série.

Entre a timidez e um domínio total do palco, Knausgard, que vendeu 500 mil cópias em seu país natal, de apenas cinco milhões de habitantes, comentou sobre seu mais novo trabalho (“uma busca por maturidade”) e o processo de escrita de “Minha luta”, definido pela autora inglesa Zadie Smith como “viciante como crack”.

– Escrevi esses livros de maneira muito rápida e não os li desde então. Não me lembro de muitas coisas. Mas o quarto volume é sobre a adolescência e início da vida adulta, quando eu era professor numa vila de pescadores, o que é ótimo como tema para um escritor – disse Knausgard, que afirmou ter sido uma criança melancólica e isolada – Venho de uma casa sem cultura, restrita, e de uma época em que o modelo de comportamento aceitável era o viking. E eu gostava de ler, conversar com as meninas, colher flores. Escrever sobre isso foi uma maneira de me libertar e me sentir vivo.

Essa insegurança e a necessidade de afirmar a masculinidade são temas que perpassam a obra do autor, repleta de auto-ironia e raiva, presentes no motivo juvenil de auto-afirmação que o levou a escrever, para provar à sua família, que não o apoiava, que ele poder se tornar um grande escritor: “Era isso ou eu me matava.”

Outro sentimento abordado com frequência é a vergonha. Em “Uma temporada no escuro”, por exemplo, Knausgard conta sobre a perda tardia de sua virgindade e outros temas que ninguém costuma falar em público, sobretudo numa cultura pouco confessional como a nórdica.

– Quando mostrei ao meu editor a passagem na qual falo que me masturbei pela primeira vez apenas aos 19 anos, ele me olhou e ficou rindo por dez minutos. Mas, quando você escreve, é permitido dizer tanto coisas estúpidas quanto substanciais. E falar sobre vergonha é necessário, já que somos seres sociais. Escrever esse livro foi a pior coisa que eu poderia ter feito. Até quando falei sobre outras pessoas a estrita foi cheia de raiva contra mim – contou.

A morte do pai

E essa sentimento destrutivo também foi recebido pelo autor quando os livros, que desvelam as intimidades de sua família e seus amigos mais próximos, foram lançados. A questão foi levantada por Guerría-Quintana, que mencionou uma frase do escritor americano Jonathan Franzen: “você não pode ser um bom artista em busca da verdade e uma boa pessoa ao mesmo tempo.”

– De certa maneira, escrever sobre outras pessoas é imoral. Mas a vida é feita de relacionamentos com os outros. Eu estava furioso e frustrado quando comecei esse livro. Foi muito auodestrutivo. Meu tio quis até me processar – disse Knausgard, cuja mulher pediu para ele não descrevê-la como uma chata. – Quando você é casado, muitas coisas não são ditas pelo bem-estar do casal. É uma relação baseada em mentiras. E eu contei todos os meus pensamentos íntimos sobre nós. Ela teve dificuldades com isso. Só me culpo de ter feito “Minha luta” quando penso que isso um dia pode afetar meus filhos, mas tento manter esse tipo de pensamento afastado.

Knausgard afirma ter demorado dez anos para conseguir colocar no papel o tema que daria origem à série, a morte de seu pai, vítima do alcoolismo.

– Eu odiava meu pai, realmente queria vê-lo morto. Quando ele morreu, contudo, vê-lo foi uma visão chocante. Eu me impressionei com a banalidade da morte. Só então descobri como abordar o tema: através das trivialidades da vida. É sobre isso que falo. Afinal, minha vida sempre foi entediante e pouco interessante, como a de todo mundo – comentou.

Proust Norueguês

Segundo o autor, o processo musical e literário partem do mesmo princípio da prática exaustiva:

– Para escrever bem é necessário falhar e falhar mil vezes seguidas. É como uma banda, que ensaia repetidamente até que tocar seja uma atividade natural. Você precisa escrever ou tocar um instrumento sem refletir. Pensar é superestimado – disse.

Esse exemplo pode ser visto no início de “A morte do pai”, cujo estilo rebuscado foge da escrita febril e direta das milhares de páginas de “Minha luta”.

– As 15 primeiras páginas do primeiro volume são um ensaio sobre a morte. É o melhor que há em todos os livros. Quando meu editor leu a prova, ele disse que precisaria cortar a introdução porque era diferente de todo o resto. E eu respondi: não, é o único lugar onde podem ver que eu sei escrever bem – contou Knausgard.

Uma pergunta inevitável vinda da plateia perguntou sobre as comparações que a ambiciosa empreitada de autoficção do escritor recebeu com Proust.

– É quase um insulto. É impossível ser uma espécie de Proust norueguês. Ele escreve de maneira fina e elegante. Seu livro (“Em busca do tempo perdido”) é a melhor obra literária já escrita. é o melhor livro já escrito. A única coisa em comum entre meu trabalho e o dele foi no tamanho do livro. Só isso – afirmou.

Knausgard, que terminou “Minha luta” anunciando que se aposentaria como escritor, afirmou que o Brasil estará inserido em seu próximo projeto.

– Um trecho é um diário sobre o mês de junho. Como eu cheguei ao Rio no dia 27 de junho, o Rio, Paraty e você (Guerría-Quintana) estarão no livro.