Cotidiano

Gérson sobre Dunga: 'Não deveria ter vindo a primeira vez nem voltado'

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NITERÓI ? Em entrevista ao GLOBO em sua casa em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, o craque Gérson falou sobre a
infância e o início no futebol na sua cidade natal, sobre sua luta pela
profissionalização dos jogadores, sobre a seleção brasileira e o técnico Dunga:
?Não deveria ter vindo a primeira vez nem voltado?. Aos 75 anos, um dos astros da seleção tricampeã do mundo em 1970 comanda um projeto para 1.700 crianças carentes e sorri afirmar que se transformou em “uma pessoa mais importante para Niterói depois disso”.

?DUNGA NÃO É TREINADOR?

Comentarista do canal SBT e da rádio Tupi, ele, obviamente, acompanha de perto o futebol brasileiro, principalmente o carioca, e também a seleção. Apesar de sempre tranquilo e simpático, quando fala do time de Dunga, sua postura do rádio, crítica e, de certa forma, reclamona e ranzinza, aparece na hora.

? É chover no molhado, mas ele não é treinador. Não deveria ter vindo da primeira vez e não deveria ter voltado. Ele voltou por amizade. É amigo do Gilmar Rinaldi, o coordenador, e do presidente da CBF. Veja, por exemplo, a situação do Marcelo. Ele é lateral do Real Madrid, um dos melhores do mundo e não é convocado. Por quê? Porque o técnico não é inteligente. Ele pode ter uma desavença com o garoto, mas não pode deixar de chamá-lo, porque ele é o melhor. A diferença é outra coisa, tem que ficar do lado de fora. Mas ele não é técnico, então, não vai fazer isso.

Quando o assunto é novamente Niterói, o craque retoma a calma. Há 19 anos, ele dá nome ao Projeto Gérson, do Instituto Canhotinha de Ouro. A iniciativa, comandada por sua filha Patrícia, ajuda cerca de 1.700 crianças de comunidades carentes a se formarem no futebol. São meninos e meninas, que possuem ainda assistência médica e odontológica, além de incentivo para continuarem na escola. Alguns garotos formados pelo projeto jogam, por exemplo, no Botafogo e outros foram para clubes da China. Já entre as meninas, algumas atuam nas seleções brasileiras de base e em times do Rio. Uma, Jéssica Marinho, saiu de Niterói para o Atlético de Madrid, da Espanha.

? Eu achei que deveria fazer alguma coisa para a cidade, que tanto me deu. Principalmente para as crianças de comunidades carentes. Eu acho que virei uma pessoa mais importante para Niterói depois disso, mais ainda do que quando era jogador. Fiz questão de usar a minha imagem para ajudar os pequenos. Por que, se você não faz nada, qual a razão de ter chegado aonde chegou

OS ÍDOLOS DO CRAQUE

São Gonçalo e Niterói, cidades vizinhas, irmãs, e terra de dois dos maiores gênios da história do futebol mundial: Zizinho nasceu na primeira e Gérson é filho da segunda. Mestre Ziza foi o melhor jogador da Copa do Mundo de 1950 e maior ídolo da história do Flamengo, até a chegada de Zico. Ele, fazendo jus ao apelido, foi também uma espécie de professor para Gérson durante a infância e a adolescência, quando o niteroiense ainda jogava pelos campos de terra da cidade e na base do Canto do Rio. Nessa época, apesar de já saber que era bom no que fazia, o moleque, claro, não tinha ideia de que um dia seria chamado de Canhotinha de Ouro, cérebro da seleção brasileira campeã da Copa do Mundo de 1970.

? O meu pai jogou com o pai do Zizinho e com ele também. Nós éramos próximos e, ao mesmo tempo, ele era meu ídolo. Quando ele era profissional no Bangu e eu jogava no Canto do Rio, eu juntava as figurinhas dele. E ele me dava dicas, por exemplo: ?bola dividida é terra de ninguém. É de quem chegar primeiro. Chegou atrasado, vai levar. Então, é melhor nem ir?.

Os clubes de Gérson e seus ídolos

Os outros dois grandes ídolos e mestres de Gérson foram Jair da Rosa Pinto, que, no Rio, jogou por Vasco e Flamengo e que também participou da Copa de 50; e Didi, apelidado de Sr. Futebol pelos europeus, inventor da ?folha seca? e bicampeão mundial com a seleção, em 1958 e 1962. Com o segundo, Gérson chegou a jogar no Botafogo.

? Eu perguntava, queria aprender. O Didi me dizia: ?Você está com a bola aqui e o adversário está lá, a 15 metros. Por que você vai correr? Para entregar a bola a ele a domicílio? Bota a bola no alto! Primeiro, você corre menos. Segundo, em questão de milésimos, você coloca seu colega na cara do gol?. Eles me davam as dicas e eu ouvia. Ali, quem estava falando é mestre.

Pode parecer clichê, mas com seus professores, Gérson aprendeu a utilizar a inteligência. Para ele, a melhor arma de um jogador de futebol.

? Quando você for dominar a bola que vem do seu zagueiro, você já tem que saber tudo o que está acontecendo à sua volta. Porque é melhor você receber e, ?pum?, já fazer o passe. Se você for parar, virar e olhar, aí já era, já aconteceu tudo.

A pergunta clássica, se Gérson jogaria hoje, nem precisa ser feita. Ele responde sem ser questionado:

? Não jogaria, mas por vergonha. Você já imaginou o condicionamento físico de hoje com os talentos do passado? Seria muito mais fácil. Mas o problema, hoje, é que os jogadores não raciocinam. Hoje, no Brasil, e naturalmente toda a regra tem exceção, é 80% de condição física e 20% de talento. No passado era o contrário. A maioria dos jogadores que aí estão não iriam nem jogar. Eles não serviriam nem para carregar nossas malas de material sujo de treinamento. Um dos motivos disso é os talentos irem embora do país muito cedo.

NATURAL DE ICARAÍ

Gérson de Oliveira Nunes nasceu na Rua Mem de Sá, em Icaraí, em 1941, mesmo ano que foi inaugurado o estádio Caio Martins, ali nas redondezas.

? Meus pais são niteroienses. Minha área de lazer foi o Campo de São Bento. Meu avô materno foi administrador do parque. Ele morava na casa que, hoje, é o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno. Minha mãe nasceu ali.

Do estádio quase vizinho à sua casa, ele tem boas lembranças, tanto como torcedor quanto como jogador.

? Ali sempre foi a minha casa. Eu tenho uma foto, de quando o meu pai ainda era jogador do Cassino Icaraí. Eu, pequenino, na frente do time. Eu acompanhava os jogos, ia ver os times grandes, e não só o Fluminense, que eu sou torcedor. Além disso, às vezes eu jogava as preliminares.

Em 75 anos de vida, Gérson só deixou Niterói por três, quando jogou no São Paulo, entre 1969 e 1972.

? Gosto muito da cidade. Minha família é daqui. Meus primos, minhas tias, todo mundo. Com 18 anos, assim que entrei no profissional do Flamengo, tive a chance de ir para a Itália, tive propostas do Milan e do Bologna. Mas eu não me interessei muito. Garoto, casa, comida, roupa lavada, carro, jogando no Flamengo, ia sair daqui pra quê?

Além disso, sua vida teria sido outra se ele tivesse deixado o país. Gérson não teria conhecido sua mulher Maria Helena, com quem teve duas filhas.

? Com 18 anos, eu, naturalmente, ficaria por lá algumas temporadas. E eu a conheci com essa idade. Então, hoje, sem ela, eu não seria ninguém.

Há 40 anos Gérson mora na mesma casa em São Francisco, a duas quadras da praia. Ele vê com nostalgia o passar dos anos, tanto no que diz respeito a seu bairro quanto em relação ao futebol do município.

? São Franciso não era assim. Quando chegamos, tínhamos nós, o Tonico, que foi presidente do Canto do Rio, nosso vizinho e mais umas dez casas. Não eram essas casas coladas umas às outras, esse inferno que você vê aí. Quanto ao futebol, é triste. O Canto do Rio foi enfraquecendo, os patrocínios foram minguando e, hoje, o clube praticamente acabou. Além disso, os grandes não vieram mais jogar no Caio Martins, o que enfraqueceu mais ainda o esporte na cidade.

RETICENTE QUANTO AO FUTURO DO CANTO DO RIO

Há cerca de três meses o Cantusca assinou um acordo com a UFF para que profissionais de psicologia, fisioterapia, odontologia e educação física da universidade atuem junto aos atletas. Em contrapartida, as instalações do clube são usadas pela UFF. Gérson acha a atitude louvável, mas ainda tem um pé atrás em relação ao futuro do time.

? Você não coloca uma equipe numa liga só com psicólogos. Tem que pagar os jogadores, os técnicos, o transporte, tem que ter um lugar pra jogar. Os clubes chamados pequenos, incluindo o Canto do Rio, tem que se unir para ter força. Eles tem que ter, sim, o apoio da federação, mas não podem depender somente disso e devem pedir mais. Eles têm que entender que, juntos, são muito fortes.

Da base do Canto do Rio, Gérson foi para os aspirantes do Flamengo. Lá, se formou profissional, foi campeão carioca e chegou à seleção.

? Passei a treinar no Rio, alguns dias de manhã e outros de tarde. Aqui em Niterói moravam também outros jogadores, Altair, Jair Marinho, Roberto Miranda, o Jeremias, do América, tinha uma corriola. Então, a gente marcava e todo mundo entrava na lancha. Nos juntávamos e atravessávamos a baia, para a ida e a volta, porque os treinos eram nos mesmos horários.

Depois do rubro-negro, o resto é história. Veio a passagem gloriosa pelo Botafogo, que culminou com a sua participação e vitória na Copa de 70.

? No Botafogo, joguei com Nilton Santos, Garrincha, o próprio Didi e o Zagallo, com quem já tinha jogado no Flamengo. Apesar de já conhecê-los, porque jogava contra, eles eram meus ídolos. Jogar com eles não tinha explicação. E eles sabiam disso, porque eu dizia a eles. Antes, eu pedia autógrafos e, depois, fazia parte daquele grupo. Hoje em dia não tem isso. Porque os garotos só têm contato pela tela, já que os grandes jogadores estão na Europa.

Inevitavelmente, Gérson olha com tristeza os estádios vazios, mais do que comuns em jogos das equipes brasileiras.

? Eu ia ficar muito chateado se, na minha época, só estivessem meia dúzia de caras na arquibancada, como é hoje. Os clubes estão alegres com 30, 40 mil no Maracanã. Tinha que ficar triste. Antigamente, todo o clássico levava para mais de 80 mil torcedores. Hoje, se o público limite é 70 mil, você deveria colocar 70 mil.

Da Copa de 70, Gérson trouxe o respeito de campeão e a proposta de profissionalização dos jogadores. Seu objetivo era criar um sindicato para representar a categoria. A ideia era seguir o modelo argentino, que foi mostrado a ele, ainda no meio dos anos 1960, por Antonio Rattin, meio campista líder do Boca Juniors e da seleção argentina.

? Sentamos com o presidente Médici lá em Brasília e discutimos isso. Nós queríamos um representante no governo, a criação de um sindicato e de um fundo para a aposentadoria do jogador profissional. Foi tudo por água abaixo. Como o atleta faz para se aposentar hoje? Se ele ganha milhares de reais, pode pagar uma previdência privada. Mas a maioria não ganha. E a carreira termina aos 35 anos, sem ele ter estudado, sem ter uma outra profissão, sem nada.

Hoje, o Canhotinha olha de perto o movimento Bom Senso FC, grupo formado por jogadores e ex-atletas, que luta pelos direitos da categoria. Ele acha, porém, que o problema, ao contrário de 70, está nas grandes estrelas, que não colocam a cara.

? O Neymar deveria chegar junto, mas, ele vai se preocupar com isso? Os que estão na Europa, que ganham mais, não se interessam. Não tem muita união e é por isso que não dá o salto que deveria. Se todos fossem sindicalizados, seria diferente, porque seria uma obrigação.