Em um episódio destacado de suas ?Confissões?, Santo Agostinho faz um relato de um furto de peras na vinha de um vizinho. Ele estava entre amigos, e não roubavam para comer as frutas. O prazer consistia em praticar o que lhes agradava, ?pelo fato de o roubo ser ilícito?. Atormentado por esse gesto quando tinha apenas 16 anos, Santo Agostinho dedicou boa parte de sua vida e obra a buscar as origens do mal.
O que isso teria a ver com o futebol brasileiro? Ora, durante algumas décadas louvávamos os jogadores que se utilizavam de artifícios de dissimulação para enganar o árbitro. Isto era considerado ?malandragem?, como uma marca de nossa suposta astúcia, e nos deleitávamos com eles. A diferença para o ato que tanto afligiu Santo Agostinho estaria centrada no fato de que estes logros objetivavam trazer algum benefício para o atleta, seu time e torcedores.
De uns anos para cá, as arbitragens passaram a punir com cartão amarelo atletas que simulam faltas. E com os recursos cada vez mais sofisticados e precisos de transmissão televisiva, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva julga a posteriori agressões ou simulações não percebidas pela arbitragem no momento da partida.
Dessa forma, as disputas estariam se tornando mais ?éticas?, com a repressão aos recursos dissimulatórios. As crescentes críticas por parte da imprensa e da torcida a jogadores que simulam faltas também demonstram que o ?prazer pelo ato ilícito? passou a ter uma conotação moral negativa, como um ?mal” que deve ser punido.
Este processo confirmaria o ?processo civilizador? estudado pelo sociólogo alemão Norbert Elias, indicando que estamos diante de um movimento de controle de supostas pulsões primárias que estimulariam o engano e a dissimulação.
Mas, no universo do futebol, temos um engano que faz parte das regras e continua sendo valorizado, ainda que ande meio escasso no Brasil: o drible. Se, por um lado, o processo civilizador, nos termos de Elias, mudou a maneira de apreciar o esporte, indo na direção de uma competição mais ?ética?; por outro, estaríamos sentindo falta da dissimulação legal proporcionada pelo drible, que nada mais é do que um engano.
O famoso drible de corpo de Pelé em Mazurkiewicz na partida contra o Uruguai na Copa do Mundo de 1970 é até hoje lembrado como um dos momentos mais marcantes da história deste esporte. O belo romance ?O drible?, de Sérgio Rodrigues, nos brinda com uma descrição ímpar deste lance, tornando-o ainda mais emblemático.
No entanto, é revelador observarmos que dentro do processo civilizador, que busca controlar as simulações, o drible, artifício legal deste esporte, tenha se tornado algo mais raro justamente no país que se orgulhava de praticar o tal do ?futebol-arte? e ter um estilo de jogo ?dionisíaco?, conforme colocou certa vez Gilberto Freyre.
Uma coisa não deveria influenciar a outra, como parece não ter interferido na Europa, centro do processo estudado por Elias. Lá, temos a sensação de que os dribles continuam acontecendo. E essa pode ser uma das razões para que as partidas dos campeonatos europeus façam sucesso entre nós. O drible é uma das graças do futebol. Sem dribles, as partidas se tornariam mais monótonas.
Se, por um lado, o drible pode derrubar o esquema tático adversário; por outro, ele carrega em si uma dose inevitável de risco, já que, se não for exitoso, pode acarretar em benefício ao adversário. O futebol brasileiro está passando por um período de escassez de grandes talentos, e isso poderia explicar a diminuição de dribles. Mas o problema não poderia ser também o resultado de um excessivo receio de perder que foi tomando conta do nosso futebol? Se o drible traz consigo o risco, o medo exagerado de perder faz com que se descarte seu uso. Esta é uma hipótese que merece investigação.
Ronaldo Helal é professor da Faculdade de Comunicação da Uerj