PARATY – As múltiplas nacionalidades de
autores presentes na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) trazem para
a cidade a urgência de um debate que envolve múltiplas origens e se alastra pelo
mundo. O ultranacionalismo está na Europa, no Oriente Médio, na África, nos EUA
e no Brasil, e também está à sombra e às vezes até à luz da literatura. Com os
movimentos que levaram, num plebiscito realizado na semana passada, à decisão de
o Reino Unido deixar a União Europeia, o fantasma histórico da intolerância se
tornou mais presente.
O escocês Irvine Welsh, autor de ?Trainspotting? (editora Rocco), escreveu no
fim de maio um artigo para o jornal inglês ?The Guardian?, intitulado ?Não
importa em quem votarmos, as elites vão vencer o referendo?. Em Paraty, ontem à
tarde, ele revelou ao GLOBO que não votou nem pela saída nem perla permanência
na UE. Preferiu se abster:
? Eu não podia votar por nenhuma
das duas posições. Não podia votar por manter um projeto esgotado como o da UE.
Eu acredito na Europa, acredito na integração, mas o caminho está errado. Não
poderia votar por uma burocracia não democrática, não poderia votar pelo que o
aconteceu com a Grécia. Mas também não poderia votar contra a ideia da Europa.
Era uma escolha difícil.
?Tempos piores podem vir?
Welsh lembra que uma das consequências da descrença na Europa é o fato de
países como Polônia e Hungria terem elegido governos ?nacionalistas
autoritários?.
? O problema foi o que aconteceu
com a esquerda. A esquerda social-democrata foi cooptada pelo neoliberalismo, e
a esquerda marxista, com sua negação do capitalismo que não leva a nada, não
apresenta alternativas para o modelo de globalização. Assim é mais fácil para
demagogos de extrema-direita se estabelecerem ? disse Welsh.
Outros britânicos da programação principal da Flip também trouxeram a Paraty
as preocupações com o crescente nacionalismo e o resultado do referendo no Reino
Unido. Kate Tempest, romancista inglesa, teme que ?tempos piores podem vir?. Já
a escritora Helen Macdonald afirmou que a ?Inglaterra está em chamas?.
? Pessoas que não estavam no poder fizeram pressão na população e isso levou
à vitória pela saída. O pior é que essa gente usa os imigrantes como culpa para
os problemas econômicos. É um horror o que está acontecendo ? diz Helen.
? É
uma raiva nascida do medo. Estamos no meio de uma mudança de primeiro-ministro
para alguém muito de direita, muito sinistro ? afirma Kate. ? Mas isso não é
novo. Eu cresci num lugar extremamente misto, me sinto muito privilegiada por
isso. Mas, quando você deixa Londres, a cidade grande, e vai a locais com menos
imigrantes, o sentimento de medo da imigração é grande.
O medo foi o que levou o sírio Abud Said, mais um autor convidado da Flip
2016, a deixar a Síria e se mudar para Berlim depois da chegada do grupo
extremista Estado Islâmico em 2013. Said notabilizou-se por publicar posts
irônicos no Facebook sobre sua rotina. Ele tenta se afastar do rótulo, mas
invariavelmente acaba tratando de política.
Em 2012, um ano após a Revolução Síria, ele escreveu sobre as disputas de
diferentes etnias responsáveis por conflitos em seu país: ?A despeito da guerra
civil/ esta manhã vou convencer minha mãe de que ela é drusa/ em outra manhã,
vou convencê-la de que ela é curda/ então vou convencê-la de que nós não somos
sunitas e nossos estúpidos ancestrais nos enganaram, pois somos alauítas/ Numa
noite chuvosa, vou convencê-la de que somos judeus?.
Said, contudo, renega o papel transformador da arte na luta contra o
nacionalismo.
? Não acredito que a arte possa ajudar a resolver problemas. O que a arte
pode fazer pela América? Você vai mudar Obama por um desenho? Você vai fazer um
filme e tudo vai ficar bem? ? afirma, lembrando que sofre preconceito na Europa
por sua origem. ? Berlim é uma cidade onde as pessoas pouco se preocupam de onde
você é. Mas, quando vou para outros lugares da Europa, os olhares são
cruéis.
Diferentemente de Said, há autores na Flip que já lidaram mais diretamente
com o nacionalismo em sua obra e acreditam no efeito da literatura. No sexto e
último livro da sua série ?Minha luta?, ainda inédito no Brasil, o escritor
norueguês Karl Ove Knausgård escreveu um longo ensaio sobre Adolf Hitler e
terminou o livro com o julgamento do terrorista de extrema-direita Anders
Breivik, que matou 77 pessoas e feriu 51 em julho de 2011. Hoje vivendo em
Estocolmo, na Suécia, ele vê o crescimento dos partidos ultranacionalistas em
toda a Escandinávia.
? Eu escrevi sobre Anders Breivik porque a questão era: ?como isso foi
possível??. No início dos anos 1930, ninguém sabia o que estava prestes a
acontecer. Você pode olhar para aquele momento e entender as razões da ascensão
do nazismo e do fascismo. Em um momento de crise, as pessoas chamam os
populistas de direita ou de esquerda.
Knausgård também critica o tratamento dado atualmente aos refugiados na
Suécia, constantemente ameaçados de expulsão, e afirma que vê ?muita raiva? no
continente:
? A questão dos refugiados tem sido
muito mal administrada, pelo menos na Suécia, dando margem ao surgimento de
grupos anti-imigração e soluções simplistas. Há muita raiva na Europa, nos
Estados Unidos. Estão culpando pessoas que são absolutamente inocentes, os
refugiados e os imigrantes.
Já o psicanalista e professor da USP Christian Dunker, também convidado da
programação oficial da Flip, aponta que o florescimento de movimentos
ultranacionalistas está relacionado a um tipo de sofrimento específico do mundo
contemporâneo. A questão passa, segundo ele, à ideia de que todo o sucesso, ou
todo o fracasso, depende só do indivíduo ou do seu grupo.
? O neoliberalismo vem sendo
bem-sucedido ao vender a ideia de que o sofrimento diz respeito ao combate entre
particulares, o nós contra eles. É o confronto dos velhos contra os jovens, dos
europeus contra os imigrantes. A saída da Inglaterra da comunidade econômica
europeia significa que não se aposta mais num projeto universal de união. A hora
que você incutir essa ideia de que todo o fracasso ou sucesso depende de você e
do seu pequeno grupo, dá nisso. Por que vou financiar um grego? Um refugiado
sírio? O outro ficou pequeno, é um outro ?nós?, não é mais um conjunto
indeterminado de diferenças. Mas um outro identificável ? diz Dunker.