Cotidiano

Daniela Rodrigues: 'As memórias são sobre o agora'

201605112016170272.jpg“Sou de Lisboa. Ser antropóloga foi um percurso meio acidental, mas agora é o que sou. Faço um doutorado em que pesquiso os objetos que vão e vêm nas bagagens dos portugueses que estão no Brasil. Foi uma pesquisa que iniciei em Lisboa, também por acaso, mas que está me permitindo cruzar meus percursos interiores.”

Conte algo que não sei.

O desenho é uma ferramenta preciosa de observação. Na Antropologia, tenho me apropriado disso para me auxiliar na percepção mais apurada das coisas e dos ambientes. Curiosamente, ao mesmo tempo em que comecei a desenhar objetos do cotidiano, passei a me interessar mais pela cultura material na Antropologia. Não sei o que é causa e o que é consequência, mas algo me fez olhar para aquilo que antes não via nos encontros. Perceber o detalhe é fundamental. Quando você desenha está interiorizando sua relação com a coisa.

É como se forçar a olhar o ?banal??

Exatamente. É ver o invisível, de tão banal que é. A ideia, que pra mim é básica, é que desenhar é ver. Às vezes, o resultado do desenho não interessa, o que me interessa é que essas linhas são linhas de tempo. A fotografia é o tempo congelado, e, no caso do desenho, cada tracinho é um tempo. Sou eu naquele lugar.

Que lugar a materialidade ocupa em tempos digitais?

Sempre fui interessada pelos fluxos de migração e por entender o que, ainda hoje, as pessoas transportam. Você tem um contexto de digitalização e de virtualidade em que se arquiva tudo em HD. Toda essa misturada me provocou a pensar: que objetos a gente ainda usa? Quais e por quê? Estudo os objetos que vão e vêm nas bagagens dos portugueses que estão emigrados no Brasil. As pessoas têm essa ?ilusão da era digital?, mas, em última instância, penso que as coisas nunca desapareceram da vida cotidiana. Nós não abandonamos os objetos.

O que os portugueses emigrantes trazem na bagagem? Há algo em comum?

A unidade que encontrei, até o momento, é que efetivamente as coisas pesam. E a mudança é um processo difícil, as pessoas sofrem. Há livros, tem uma chave que é importante para um; o outro tem a fotografia do pai. O bonito é que as coisas não se repetem. O trabalho é microscópico, porque me interessam as diferenças. Acompanhando um ator de rua e um gerente de uma multinacional, pude perceber que há uma estratégia de não acumulação. Das coisas emocionais, quando se guarda é uma fotografia, uma coisa que não vai ocupar muito espaço. Mas há pessoas, por outro lado, que, para se sentir em casa, precisam do lençol da avó, das xícaras de chá de Portugal. No fundo, o que você escolhe tem a ver com o vínculo que você construiu com aquilo. Ainda não tenho conclusões, só pistas. Estou trabalhando com o agora. E no agora entram as memórias, que são sempre sobre o presente. Como você conta suas histórias e suas memórias é, na verdade, um dado muito forte sobre os seus valores do atual.

O que mais tem chamado a sua atenção?

Muita gente vem de Portugal com aquela ?ideia dos trópicos?. Há um romantismo em relação ao Brasil. Isso é muito forte. Tem a dimensão de que a relação com o corpo mudou, com a espiritualidade, com a sexualidade. O discurso do lugar quente e do carnaval é muito presente. Chegar é um choque. É difícil generalizar, mas nossa ideia de identidade nacional ainda é construída de forma a nos fazer pensar que somos todos irmãos, e que Portugal foi uma maravilha para o Brasil. Não é assim, é óbvio, e é necessário desconstruir essa ideia, mas a narrativa que nos é contada desde criança é essa. Somos estrangeiros, mas chegamos esperando outro reconhecimento, por causa do cordão umbilical colonialista. Muita gente fica ofendida porque vocês não entendem o que falamos, mas entendemos perfeitamente vocês. O fato é que somos estrangeiros, a questão é essa.