?Trabalho na área de saúde desde 1971. Em 1989, foi-me proposta a aventura de organizar os transplantes na Espanha. Atuei como coordenadora da ONT até 2016, e dou curso sobre comunicação em situações críticas. Também prestei consultoria a Pedro Almodóvar em três filmes. Ele é um gênio.?
Conte algo que não sei.
O doador é a pedra filosofal do processo. A doação é o direito que temos de sermos generosos após a morte. Provavelmente, não refletimos sobre isso, mas, ainda que eu queira ser doadora, nada me garante que eu possa. Porque é preciso morrer de uma forma especial: no hospital e de morte cerebral. Por isso, é importante que, caso eu morra em uma UTI, haja profissionais que pensem que posso ter o direito de doar.
E como se garante esse direito?
É importante que nós, profissionais da saúde, saibamos que a doação é um direto do paciente. Que, quando uma pessoa morre nessas condições, é preciso avisar ao coordenador de transplantes. Assim, ele pode seguir todo o protocolo para que, através da família, esse direito seja exercido.
Mas a negativa das famílias não é, hoje, um dos maiores obstáculos à doação?
Isso é um mito. É muito fácil pôr a culpa nas famílias. O problema está nos profissionais da saúde, que não aprendem como transmitir as más notícias. Às vezes, por trás de uma aparente frieza do profissional, o que se esconde é pânico, por não saber como intervir. Ele pensa ?pobre família, perdeu um filho e, agora, tenho que lhe pedir os órgãos?. Como se a doação fosse acrescentar mais dor… Se penso que vou causar mais danos à família, claro que o mais provável é que eu fuja.
Como, então, preparar esse profissional?
É fundamental humanizar a relação e a comunicação terapêutica. O principal objetivo não é obter a doação. É ajudar a família em luto, acolhê-la e respeitá-la. Trata-se de um tripé muito importante nessa relação: respeito, empatia e autenticidade. Quando crio esse vínculo, estou ajudando a família que inicia o luto. E, de maneira adequada, ofereço a possibilidade da doação. Mas não perguntarei à família se quer doar. Direi que ela tem um direito, que seu ente querido morreu e quis ser generoso após a morte. E que não são todas as pessoas que podem ser, só as que morrem como ele.
Seu país é referência mundial em transplantes. Os espanhóis são mais generosos?
Quando entrei na ONT, em 1989, tínhamos uma taxa de negativa das famílias de 30%. Agora, é de 15%. E, em todos estes anos, a lei é a mesma. A atitude da população também não variou. Não estamos em primeiro no ranking das nações a favor da doação. Apenas 57% da população espanhola doariam os órgãos. Mas países que estão acima de nós não têm o nível de aceitação familiar que temos. Isso é fruto de um esforço em formar profissionais em acompanhamento de crise.
O que o Brasil precisa fazer para chegar a este patamar?
Primeiramente, estudar um modelo que funcione, como o espanhol. Mas não se pode só importá-lo, e sim adaptá-lo. Em Santa Catarina, ele está adaptado. É o estado com a taxa de doação mais elevada do Brasil. São mais de 30 doadores por milhão de moradores (a média brasileira é de 14,6). As chaves do modelo espanhol são uma rede de doação potente em nível nacional e estadual, coordenadores de transplante dentro dos hospitais ? preferivelmente, que sejam provenientes das áreas de terapia intensiva, onde estão os potenciais doadores ? e formação dos profissionais.