RIO ? Um ano após a estreia de ?Sexo neutro?, pela qual foi indicado aos prêmios Cesgranrio e Questão de Crítica de melhor texto, o autor e diretor João Cícero assina ?Batistério?, que estreia neste sábado no Sérgio Porto (2535-3846), às 21h, com os atores Ana Paula Novellino, Evandro Manchini, Laura Nielsen e Ricardo Ricco Lima. Inspirada em ?Rosmersholm?, de Ibsen, a peça parte do reencontro de um filho com seus pais e uma agregada da família em um sítio, onde se desenlaçam embates sobre religiosidade, aborto e adultério.
O que o levou a escrever ?Batistério??
Estava dando um curso sobre Ibsen, pensando a sua obra plasticamente, o ritmo, o ritmo, o modo como ele expande suas peças que ficam sempre, me parece, entre o realismo e o simbólico. Em Ibsen, tudo é extremamente metafórico. Me veio, então, um problema formal: pensar em abrir uma metáfora moral. O título é como uma metáfora negativa. Batistério é o espaço religioso das igrejas onde se dá o batismo, símbolo de um novo nascimento. Mas o título aí se refere a um fracasso. Nada nasce. Também não chega a morrer, aborta-se. Aborta-se pois não se acredita na vida, no prazer e na liberdade.
A peça gira em torno do tema do aborto, portanto?
Sim. Fala-se de aborto de modo real e simbólico. Não quero fundamentar, mas abrir com sutileza uma discussão profunda. O aborto mencionado na peça é criminoso, pois se trata de uma mulher que foi forçada a tal. Acho importante falar desses casos criminosos para se pensar de um modo mais amplo o direito da mulher ao seu corpo. Ela é a dona da sua concepção. É ela quem decide. Acho que aí mora uma questão fundamental que assusta muito a nossa sociedade patriarcal e machista. Nesse sentido, a peça fala também da crise do patriarcado.
?Batistério? é um desdobramento mais próximo de uma continuidade ou de uma ruptura em relação à ?Sexo neutro?, no que se refere a suas investigações formais e temáticas?
As duas coisas acontecem. A ruptura e a continuidade. Há uma grande diferença formal. ?Batistério? não é uma peça com o nível de fragmentação de ?Sexo neutro?. O tema central também é o gênero e a sexualidade humana. A mulher é uma questão de gênero. Falar da violência cotidiana sexual e invisível que a mulher sofre em universos patriarcais é um tema que me atravessa. Outra similaridade é o universo vivencial dos personagens: Márcia/Cléber, de ?Sexo…? era um transexual masculino criado dentro de uma igreja evangélica da Baixada Fluminense. Em ?Batistério?, os personagens também estão ligados a esse universo religioso. São pobres e vivem de favor num sítio missionário. Não são classe média e não se formaram como indivíduos em um espaço de privilégio, com acesso a um discurso de empoderamento social.
Você toma como base ?Rosmersholm?, de Ibsen, mas com quais intenções?
É uma inspiração. Penso que a peça de Ibsen faz uma leitura da sociedade protestante da Noruega do século XIX, expõe sua repressão sexual. Por isso, Freud se interessou tanto pela obra e escreveu um ensaio sobre ?Rosmersholm?. Tento reler questões vigentes do Brasil atual, sem fazer um discurso debochado. É muito fácil debochar, ou pressupor um inimigo oculto e trazer o escárnio coletivo de uma plateia laica.
O que a obra de Ibsen oferece a ?Batistério??
Na obra de Ibsen, Rosmersholm é o nome do sítio onde vive o pastor Rosmer. O espaço de ?Batistério? também é um sítio e o personagem central é um pastor. Em Rosmersholm a mulher do pastor se suicidou e morreu. Aqui, o suicídio da mulher do pastor fracassou. Na peça de Ibsen há uma governanta culta que manipula a situação por ser apaixonada pelo pastor. No Brasil isso é muito raro de se encontrar. Em nossa realidade social a luta de classe faz com que os serviços domésticos sejam pouco remunerados. Então, há uma empregada doméstica na peça, Hilda, agregada da família. Ela vive de favor e grata, sofrendo uma violência diária. Até aí sigo com Ibsen. Depois, cruzo essa estrutura de Ibsen com o tema bíblico do filho pródigo, que na minha peça é claramente um não-filho. Nesse personagem descrente, que atravessa a ficção como um observador cético, há muito de Nietzsche. É um pouco a vontade de um mundo mais leve, sem a figura de um pai e sem Deus. Ou se houver pai e Deus, que eles te deixem viver com potência e liberdade.