O Rio nos maltratou às vésperas dos primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul, que começam oficialmente amanhã. A violência urbana fugiu do controle. O aparato de repressão asfixiou comunidades populares em atitude tão inaceitável quanto habitual. No segundo trimestre, a polícia matou 124 pessoas na cidade; só em junho, foram 49 homicídios, o dobro do registrado no mesmo mês de 2015. Ainda ontem de manhã, o Complexo do Alemão padecia com mais um confronto entre policiais e traficantes.
Não foi à toa que a Anistia Internacional Brasil lançou a campanha ?A violência não faz parte desse jogo?, para denunciar violações de direitos humanos na cidade olímpica. Um documento cobrando treinamento e abordagens adequados pelas forças de segurança, respeito à liberdade de manifestação pacífica, investigações imparciais e independentes e assistência a vítimas foi assinado por 120 mil pessoas e entregue ao Comitê Rio 2016. No mês passado, estreou o aplicativo Fogo Cruzado, um mapa colaborativo sobre ocorrência de tiroteios e confrontos. Em um mês, houve mais de 600 relatos.
Em sete anos de preparação para os Jogos, o Rio tampouco foi capaz de avançar na agenda ambiental, que prometia despoluir a Baía de Guanabara e as lagoas de Jacarepaguá. As competições de vela vão ocorrer num cenário livre apenas do lixo aparente, recolhido por balsas. E só Deus sabe o que pode acontecer se chover.
Os investimentos em mobilidade urbana não livraram a cidade de megaengarrafamentos na semana derradeira. Foram 120 quilômetros de puro estresse na última segunda-feira e 200, na terça. A circulação inviável levou à decretação do quarto feriado municipal durante a jornada olímpica, para desespero do empresariado ante ao efeito do expediente interrompido na atividade econômica. Todos esses passivos são conhecidos, merecem críticas e exigem mobilização permanente da sociedade carioca. A cidadania participativa do novo século não aceita o estelionato eleitoral nem se contenta com as realizações possíveis. O anseio é pela cidade ótima; e as autoridades têm de aprender a lidar com isso.
Mas a festa está na rua e o meu lugar, engalanado, é bonito como nenhum outro. Quando o clima de celebração se instala, a paixão renasce. As fotos lindas de todos os cantos da cidade que pipocam nas redes sociais são a prova. Difícil imaginar cenário mais bonito para uma competição esportiva, do Leme ao Pontal, da Lagoa ao Maracanã, do Centro a Deodoro.
As delegações estrangeiras, que desembarcam aos milhares com uniformes coloridos e smartphones em punho, estão a nos escancarar o significado dos Jogos. Os suíços tomaram a Lagoa; os franceses, a Hípica. A Dinamarca ocupou Ipanema; a Itália, a Barra. O CCBB abriu espaço para a magnífica exposição de obras dos museus D?Orsay e L?Orangerie, de Paris. Os mexicanos montaram uma mostra arqueológica e uma exposição audiovisual sobre Frida Kahlo no Museu Histórico Nacional. O ?Abaporu?, obra-prima brasileira hoje no acervo do Malba argentino, migrou para o MAR. Virou capital do mundo o meu lugar.
O jamaicano Usain Bolt, multicampeão olímpico e mundial do atletismo, está treinando em instalações da Marinha, na Avenida Brasil. O igualmente laureado Michael Phelps, americano da natação, está na área. Simone Biles, fenômeno da ginástica artística dos EUA, e nosso Arthur Zanetti, o homem das argolas, também. A seleção bicampeã do vôlei feminino, orgulho nacional, vai brigar pelo tri. E vai que a seleção de futebol desencanta…
O povo do samba foi escalado e entrará em campo (viva!) na cerimônia de abertura e em programação intensa na região portuária revitalizada. Anteontem, os boêmios do Sat?s festejavam a vitoriosa campanha #agnaldoolimpico, que conseguiu fazer do garçom e churrasqueiro do bar de Copacabana um dos condutores da tocha. O Comitê Rio 2016 formalizou o convite após saber do flashmob etílico, que percorreu com um arremedo de chama olímpica 13 botequins do bairro. Mais carioca, impossível.
O Rio maltrata, mas é lindo. É lindo, mas maltrata. O Rio é cigarra; a gente intui o inverno de escassez, mas não resiste à cantoria do fim das tardes de verão. O Rio é amor bandido, é filho pródigo. A gente puxa a orelha e belisca; se emociona e acolhe. Me abraça, meu Rio.
O meu lugar, peço licença ao mestre Arlindo Cruz, é repleto de seres de luz ? e de espíritos das trevas, especialmente entre os que o governam. É acolhedor, mas sabe ser brutal. É brutal, mas acolhedor como poucas metrópoles do mundo. Eu nasci, cresci e escolhi viver no Rio de Janeiro. Daqui não saio. Nem se o prefeito Eduardo Paes perder a paciência numa rede social e me mandar embora. Nem se os inomináveis ? sim, há mais de um candidato abaixo da crítica ? assumirem o Piranhão em 2017. (Aos não iniciados em carioquice, é esse o apelido da sede da prefeitura, erguida numa velha área de prostituição.)