Cotidiano

Dia Mundial da Infância: Em busca de estatísticas, grupos se unem para entender e tratar violência

Estado quer estimular a criação de rede integrada para atendimento e acompanhamento nos 399 municípios

Foto: Getty Images
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Toledo – A adolescente de Toledo de 14 anos estava em dois grupos de WhatsApp nos quais todos eram orientados por um mentor a se automutilarem. Quando a mãe descobriu, ela disse que “cortar a carne aliviava a dor da alma”. A adolescente não chegou a se cortar, mas já havia comprado o material cortante que foi encontrado pela mãe na mochila escolar. Ao investigar um pouco, a mãe descobriu que sua filha não era a única e encontrou dezenas de outros jovens na mesma situação.

No Núcleo Regional de Educação de Cascavel há uma preocupação latente com os casos que não param de chegar. E é na escola onde muitos deles eclodem como um grito de socorro. Esses jovens querem ser vistos antes que algo pior aconteça.

Neste Dia Mundial da Infância, celebrado hoje (21), o momento é para alertas sobre os riscos que crianças e adolescentes estão expostos nestas fases da vida.

Para a psicóloga Miriam Alves Carvalho, do NRE de Cascavel, esses indivíduos enfrentam um processo de frustração com o qual não conseguem lidar direito. Entre os fatores está a dificuldade em ouvir e aceitar um não, por exemplo. O acesso a tudo, ou a quase tudo, com pais cada vez mais distantes dos filhos, mesmo quando fisicamente juntos, tem ignorado premissas básicas do convívio social: a de impor regras e limites e a ensinar os filhos que o não também faz parte da vida.

Números

No intuito de entender mais esse comportamento e poder tomar decisões, alguns núcleos de educação passaram a registrar os casos para fins estatísticos e assim pensar em ações cada vez mais certeiras. Além do foco no atendimento às vítimas, medidas constantes são replicadas para a prevenção. Somado a isso, toda a rede pedagógica está sendo capacitada para atuar com esses jovens.


A rede de educação está mobilizada

Casos como o da adolescente de Toledo têm sido tão comuns que estão exigindo esforço dobrado de professores e da rede pedagógica. “Já registramos casos assim que evoluíram para o suicídio ou tentativa de suicídio”, revela com preocupação a psicóloga Miriam Alves Carvalho.

Na outra ponta, a mãe da adolescente que ao descobrir foi buscar ajuda imediatamente apresenta mais uma constatação: a maioria dos pais nem sequer nota a mudança no comportamento dos filhos ou conhece a gravidade da situação a tempo. “Geralmente é na escola que se descobre, nas aulas de educação física, quando os braços ficam mais visíveis. Por isso é muito importante os pais ficarem atentos à mudança de comportamento dos filhos. Crianças e adolescentes que usam roupas compridas no calor, que ficam mais caladas. Os pais precisam e devem monitorar os filhos nas redes sociais. É preciso estabelecer limites ao acesso. Isso é amor, não é invasão de privacidade”, afirma a psicóloga. Segundo ela, há ainda outros atos de alerta, como a depressão entre os jovens.

Boneca Momo

Os inúmeros casos que chegam todas as semanas às unidades educacionais trouxeram uma preocupação extra: a das inserções feitas por hackers em vídeos infantis da boneca Momo que estimula práticas autocortantes e de automutilação aos pequenos. “A tecnologia é ótima, mas exige muitos cuidados. As crianças e os adolescentes precisam de atenção, os pais precisam estar atentos e conversarem com os filhos”, completa a psicóloga.


Com sistema travado, jeito é se virar

Mas se dentro das unidades educacionais – ao menos em boa parte delas – a rede pedagógica está atenta para agir, o entrave está na rede de atendimento externa. Isso porque todas as vezes que um desses casos é registrado há a necessidade de encaminhamento para psicólogos, assistentes sociais, a própria rede de saúde. Há casos em que a espera por um atendimento chega a dois anos. “Fomos em busca de atendimento particular. Não tinha como esperar tanto tempo. Minha filha estava em risco”, conta a mãe da adolescente de Toledo.

Para fugir da dependência do poder público e não ter de esperar tanto tempo pelo acompanhamento, também em Toledo um grupo de mães e pais se articulou em um movimento ao menos para entender o que está acontecendo com os filhos e os colegas. “O envolvimento dos pais é fundamental. Há muitos casos em que os pais não dão ouvidos aos filhos, acham que é frescura, que é falta de ter o que fazer… Os pais precisam estar conscientes e se envolverem nesse processo. Há muitas situações em que o próprio adolescente pede à estrutura pedagógica que não comunique seus responsáveis porque têm medo de como eles vão reagir”, revela a psicóloga Miriam Alves Carvalho, do NRE de Cascavel.

Anjos Solidários

O grupo toledano intitulado Anjos Solidários dá amparo aos pais e aos adolescentes. Uma abertura para o diálogo, por vezes em falta em um momento tão globalizado e tão voltado às tecnologias. Assim, pais e adolescentes não se sentem só e encontram na empatia a coragem para enfrentar o problema de frente.


 

Estados e municípios buscam redes integradas

A preocupação da exposição de crianças e adolescentes na rede mundial dos computadores é uma das vertentes no alerta à proteção desses indivíduos vulneráveis e frágeis.

A violência acende uma luz de alerta em um momento em que o País ainda está fragilizado com o massacre em uma escola em Suzano, no interior de São Paulo, que deixou dez mortos.

Ocorre que dentro e fora das unidades educacionais a vulnerabilidade é visível. A constatação é reforçada pelos números que expressam a violência contra crianças e adolescentes que vêm crescendo por todo lado.

Somente o relatório do Disque-Denúncia 181, acompanhado pela Coordenação da Política da Criança e do Adolescente da Secretaria Estadual da Justiça, Família e Trabalho, mostra que o número de ligações vem crescendo ano a ano. Em 2016 foram 843 denúncias de violências contra crianças ou adolescentes, contra 1.166 em 2017 e 1.440 em 2018, crescimento de 70% em dois anos.

No ano passado, o maior número de denúncias foi de violência física (530), seguido por violência sexual (417) e negligência (243). As denúncias no interior do Estado foram maioria (650), ante 455 em Curitiba, 274 na RMC e 61 no litoral, dados apresentados pela Sejut (Secretaria de Justiça e Trabalho do Paraná) quando do lançamento da força-tarefa à Prevenção e Combate a Crimes Contra a Criança no fim do mês passado: o Infância Segura.

Os trabalhos são coordenados pelo diretor do Departamento de Justiça da Sejut, Felipe Eduardo Hideo Hayashi – ex-chefe da Delegacia de Repressão a Corrupção e Crimes Financeiros no Paraná e integrante da força-tarefa da Lava Jato desde 2014.

Entre os compromissos da força, que envolve inúmeros parceiros nos âmbitos estadual e municipal em todas as esferas de poder e da sociedade civil, será a regulamentação da Lei 13.431, de 4 de abril de 2017, “que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência, por meio de políticas integradas e coordenadas”.

Entre as ações realizadas de imediato estão operações integradas de proteção às crianças e a realização do 1º Seminário Estadual de Prevenção, Combate e Amparo aos Crimes e Violências contra a Criança e o Adolescente, que trará à tona o debate de questões de grande impacto. O evento será em maio, no mês de enfrentamento, ainda com datas a serem definidas.


Caminho começa a ser trilhado

Em ações de médio e longo prazos, revela o diretor do Departamento de Justiça da Sejut, Felipe Eduardo Hideo Hayashi, em entrevista exclusiva ao Jornal O Paraná, está a criação do Serviço Integrado de Recebimento e Monitoramento de Denúncias envolvendo o Estado e o principal desafio: a criação de redes de proteção nos municípios.

O foco está em ter uma rede de cobertura que abranja os 399 municípios paranaenses. Além do atendimento humanizado e ágil, tirando crianças e adolescentes das condições de vulnerabilidade, o Estado quer entender, em números e estatísticas, o real panorama da violência em todos os âmbitos. “As crianças são prioridade. Quando uma delas estiver em situação de risco precisa ser imediatamente atendida em uma rede ágil e que funcione. Por isso tantos parceiros, tantas capacitações que virão e a proposta das estruturas municipais às quais nada impede uma parceria entre Estado e municípios nesta implantação”, considerou o diretor. O foco em um primeiro momento é a articulação das redes na Capital, depois nos municípios polo em cada região e em seguida expandir aos demais.


Crianças e adolescentes em números

A Fundação Abrinq divulgou no ano passado uma coletânea do Cenário da Infância e da Adolescência 2018 para todo o território nacional obedecendo às características de cada estado.

O objetivo foi divulgar indicadores relacionados à infância e à adolescência, tendo como referência suas competências constitucionais, propondo recomendações para a implementação de programas, ações e políticas públicas que respondam aos indicadores.

De acordo com o estudo, quase um terço da população no Paraná, 31,7%, somando quase 3,6 milhões de habitantes têm até 19 anos incompletos. Oito em cada dez vivem nas cidades e duas no meio rural.  Do total de crianças e adolescentes, 1,3% é pobre, 0,4% é extremamente pobre e vive em condição domiciliar de baixíssima renda.

Entre os dados que mais chamam a atenção estão os referentes à população de até 14 anos de idade em situação domiciliar de baixa renda: 24,5% são pobres e 5,7% são extremamente pobres. Isso significa que há neste momento mais de 1 milhão de crianças e adolescentes na linha da pobreza ou abaixo dela, potencialmente mais vulneráveis à violência, embora ela também exista e preocupe em todos os meios e classes sociais.


Uma criança ou adolescente morre por hora por arma de fogo

A cada 60 minutos uma criança ou um adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo. Entre 1997 e 2016, mais de 145 mil jovens com até 19 anos faleceram em consequência de disparos acidentais ou intencionais, como em casos de homicídio e suicídio. Os dados fazem parte de um levantamento divulgado ontem (20) pela Sociedade Brasileira de Pediatria.

De acordo com o estudo, que considerou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, em 2016, ano mais recente disponível, foram registrados 9.517 óbitos entre crianças e adolescentes no país. O número é praticamente o dobro do identificado há 20 anos – 4.846 casos em 1997 – e representa, em valores absolutos, o pico da série histórica.

O levantamento mostra que a cada duas horas uma criança ou adolescente dá entrada em um hospital da rede pública de saúde com ferimento por disparo de arma de fogo. Entre 1999 e 2018 foram registradas quase 96 mil internações de jovens com até 19 anos no SUS (Sistema Único de Saúde).

As principais causas externas de morte por arma de fogo nessa faixa etária estão relacionadas a homicídios (94%), seguidos de intenções indeterminadas (4%), suicídios (2%) e acidentes (1%). No caso das internações, embora as tentativas de homicídio continuem na liderança (67%), é bastante expressivo o volume de acidentes (26%) envolvendo arma de fogo.

A avaliação contabilizou ainda as despesas diretas do SUS com pacientes atendidos após contato com armas de fogo. Nos últimos 20 anos, as internações de crianças e adolescente provocadas por disparos custaram mais de R$ 210 milhões aos cofres públicos.

O estudo considerou causas de morbidade hospitalar e mortalidade identificadas nas bases oficiais do Ministério da Saúde como acidentais, suicídios ou tentativas de suicídio, homicídios ou tentativas de homicídio e intenções indeterminadas.