CANNES – As facetas sórdida e grotesca do ser humano dividiram a atenção na programação desta sexta-feira, segundo dia de competição do 69º Festival de Cannes. O francês Bruno Dumont (A humanidade) abriu os trabalhos do dia com Ma Loute, exuberante comédia envolvendo canibalismo, casamentos consanguíneos, incesto e ambiguidade sexual, ambientada em um vilarejo à beira-mar, no início do século passado, que dividiu a opiniões por sua estranha combinação de gêneros. Mas sobraram aplausos para Ken Loach e seu I, Daniel Blake, que traça um retrato da classe operária britânica atual a partir da luta de um carpinteiro para receber um benefício da
“Ma Loute tem início com uma investigação sobre o desaparecimento de pessoas em uma vila de pescadores em Calais, no Norte de França, em 1910. A ação policial é liderada por dois inspetores que mais parecem uma versão aparvalhada da dupla de comediantes Stan Laurel e Oliver Hardy. Os crimes colocam em evidência duas famílias da região, os Van Peteghems, figuras da alta burguesia que mantêm um palacete de veraneio na área; e os Belforts, humildes pescadores que têm o hábito de comer visitantes incautos. Um romance proibido aproxima os dois clãs que se odeiam.
Conhecido autor de consistentes (e premiados) dramas intimistas, como Fora de Satã e Camille Claudel, Dumont retorna à comédia, gênero no qual estreou com o recente O pequeno Quinquin (2014). Aqui voltam também os personagens de feições ou comportamentos bizarros, desta vez orientados sob o registro da farsa absoluta, sublinhada com toques de realismo fantástico. Juliette Binoche interpreta uma aristocrata neurótica e excessiva que chega para visitar o irmão (Fabrice Luchini) e a cunhada (Valeria Bruni-Tedeschi), trazendo a filha adolescente, que se veste de menino e se apaixona por Ma Loute, o obscuro filho mais velho dos Belforts.
É uma história doida, sim. No entanto, é uma histórica de amor também, com um pouco de mistério e crime, enfim, uma mistura bem colorida comentou o diretor na coletiva que se seguiu à projeção do filme, que descobriu no humor uma nova fonte de inspiração em suas investigações sobre o comportamento humano. Descobri que a comédia como uma arte nobre. Mas não foi muito complicado. Basta forçar um pouco o drama que ela se torna engraçada. Aqui, a comédia é um tipo de caricatura. Criei personagens extremamente coloridos, porque a sociologia não poderia dar conta dos temas que gostaria de falar no filme.
PASSEIO PELA HISTÓRIA BRITÂNICA
Após um passeio pela História política recente da Grã-Bretanha, com Jimmys Hall (2014), Loach retorna ao território do realismo social (contemporâneo) que o consagrou. I, Daniel Drake é um raivoso e delicado alerta sobre o sistema previdenciário britânico e a burocracia kafkaniana que se construiu recentemente no país para se receber seus benefícios. A trama se desenvolve em torno do caso de Daniel Drake, um habilidoso marceneiro de Newcastle de 59 anos que, após um enfarto, enfrenta tremendas dificuldades para receber o dinheiro da licença médica.
Imprensado entre pilhas de formulários e exigências contraditórias e absurdas para conseguir a pensão a que tem direito, o solitário Blake (Dave Johns) entra numa espiral de desespero diante da ameaça de virar um sem-teto. Entre idas e vindas ao Departamento de Trabalho e Pensões, ele conhece Katie (Hayley Squires), mãe solteira que foi despejada de um conjugado em Londres e despachada pelo Serviço Social para uma cidade a 150 quilômetros da capital, e que tem dificuldades para criar dos dois filhos pequenos.
I, Daniel Blake chega aos cinemas exatos 50 anos depois de Cathy come home, telepeça dirigida por Loach para uma série da BBC sobre uma mulher que, diante das rígidas regras do Serviço Social, criadas sob a desculpa de evitar fraudes no sistema previdenciário, perde a casa, o marido e, finalmente, a custódia dos filhos.
É chocante, para mim, perceber que esse tipo de situação volta a acontecer na Grã-Bretanha tanto tempo depois de Cathy come home disse Loach, 79 anos, na coletiva de imprensa. Mas essa situação não é um privilégio dos britânicos, ela está acontecendo em todos os países da Europa. A crueldade com que organismos como esses tentam organizar as nossas vidas é extraordinária. O índice de desemprego é enorme, mas o Estado faz entender que, se você não tem trabalho a culpa é sua.
*Hospedado a convite do Festival de Cannes