Numa madrugada fria de outono, chegando à cidade de Torbat-e-Jam, fronteira do Afeganistão com o Irã, fomos conhecer o campo de refugiados que existia ao norte. Estávamos famintos demais para dormir. Fiquei até o amanhecer deitado, pensando nos mendigos que são enxotados de calçadas do Leblon no meio da madrugada sem que se pergunte antes a eles se estão com fome.
Mas este já foi um mundo pior. Décadas atrás, mendigos já foram, no Rio de Janeiro, sistematicamente assassinados por agentes do governo, com a aquiescência da classe média e de parte da imprensa.
Por mais que o enunciado chame atenção, não é correto dizer que hoje vivemos uma barbárie. Qualquer episódio da série americana ?Game of Thrones?, que emula a sociedade medieval europeia, introduz a conclusão, e de forma nada sutil.
Um mundo pior. Empreiteiros não iam parar na prisão. A imprensa livre para investigar obras como as dos estádios da Copa, coisa que a censura não permitiu que se fizesse, por exemplo, com a construção da rodovia Transamazônica, no século passado.
Mas, se não vivemos uma barbárie de fora pra dentro, vivemos, hoje, uma de dentro pra fora. Nos tornamos, no mundo inteiro, secos, primitivos, conservadores. Donald Trump, neonazistas suecos, candidato de direita virando as costas na posse do prefeito de Londres, a filosofia do Estado Islâmico, a pichação ?Morra!? em frente à casa de Jô Soares, a expulsão dos terreiros de umbanda e candomblé dos morros cariocas.
É definitivo afirmar que conservador é o sujeito que não vê defeitos em si próprio. Que invariavelmente vê apenas os crimes do outro.
Como solução para mazelas, pensamos em muros, grades e maior ênfase no punitivo. Tudo o que nos exclua do problema. Pena de morte, prisão perpétua, tudo o que faça nunca mais sabermos do condenado. Punir para não ver. Não ver para não observar a si próprio.
Em eleições, passamos a criticar as opções de voto, uma enviesada crítica à democracia. Algo que nos coloca perigosamente em sua fronteira.
Na fronteira do Irã com o Afeganistão, um refugiado de 70 anos, em farrapos mas letrado, um senhor que hoje vive barbárie inversa à nossa, porque de fora pra dentro, citou, no meio de uma conversa a respeito de conflitos, o cineasta russo Andrei Tarkovski.
?Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre é impassível e duro. Quando uma árvore nasce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece nunca vencerá…?
Nossa democracia é naturalmente jovem, fraca e flexível. Nós, brasileiros, precocemente endurecemo-nos, tornamo-nos conservadores por adesão ao zeitgeist e, principalmente, por pressa. Na primeira manhã no campo de refugiados de Torbat-e-Jam, foi servida a todos uma sopa cuja receita remonta a mil anos de idade. Nosso país tem 500.
Hoje, queremos que tudo se resolva pra já: corrupção, violência, sistema político, saúde pública, desigualdade social. Exigimos que isso se conserte agora, na nossa geração, enquanto estamos vivos. Como fôssemos maiores que o processo. Como fôssemos mais importantes que o tempo.
Tornamo-nos impassíveis, secos, duros e conservadores ? atributos da morte. Rejeitando tudo o que é flexível ? a frescura do ser. Civilizados por fora, bárbaros por dentro. Uma receita milenar de derrota. E, para mil, ainda nos faltam outros 500 anos.
Talvez seja essa, afinal, nossa esperança. Os outros quinhentos.
Dodô Azevedo é escritor