Opinião

Não suba o sapateiro além da sandália

Opinião de Decio Luiz Gazzoni

O agronegócio é o grande motor da economia brasileira. Sem ele, a recessão brasileira seria muito mais profunda, o desemprego maior, a arrecadação fiscal menor, a exportação altamente deficitária. Se a fome está diminuindo no Brasil, é porque estamos produzindo cada vez mais, a custos progressivamente menores.

Parece que o sucesso incomoda. Nunca antes neste país o setor mais fulgurante da sua economia sofreu tantos assaques. Alguns vêm do exterior, e aí é compreensível, afinal, o mundo mantém uma relação de amor e ódio com o agronegócio brasileiro. Amor, porque o Brasil oferece um forte lastro para atender à crescente demanda de alimentos. Ódio, porque nossa competitividade é de tal ordem que deslocamos outros concorrentes que buscam miná-la para se manter no mercado.

Mas parte das críticas provém de brasileiros. Críticas são sempre bem-vindas, mas toda crítica construtiva deve se compor de fundamentos sólidos – preferencialmente científicos – e de propostas alternativas viáveis e factíveis. Aí é que está o busílis do problema!

Qualquer leitor que acompanha o noticiário constatará que é raro o dia em que não há uma notícia ruim associada ao agronegócio. Mas, quando se aprofunda a análise da notícia, fica-se com o sentimento de que se trata de fake news, de desinformação, desconhecimento, maldade, ou má-fé. E nunca acompanhada de propostas viáveis para solução, é a crítica pela crítica. O espaço aqui é curto, vamos escolher três notícias de agosto de 2018 para ilustrar o exposto.

Transgênicos são mais atacados por pragas – Na matéria de capa de uma grande revista semanal, Isabela Bussade, professora de pós-graduação de endocrinologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio, afirma: “Outro grupo vulnerável são os grãos transgênicos, entre eles a soja. Por serem mais suscetíveis a um número maior de pragas, exigem um uso significativamente maior de agrotóxicos quando comparados às culturas não transgênicas”.

Uma pessoa ligada à ciência, que faz uma afirmativa dessas, precisa comprová-la. O que não será nada fácil, até porque, por definição, isso não é possível: existem variedades transgênicas resistentes a insetos. Trata-se de substituição direta, planta-se uma variedade resistente a insetos para reduzir o uso de pesticidas. Seria o agricultor brasileiro tão burro que compraria gato por lebre? Ou pagaria mais caro por uma variedade resistente a pragas e gastaria ainda mais com pesticidas?

Geografia dos agrotóxicos – Uma professora de geografia da USP produziu um Atlas com um arrazoado de informações facilmente questionáveis. Vamos nos restringir a uma de suas afirmativas: “Um dado fundamental a este respeito é que no Brasil tem-se 504 Ingredientes Ativos com registro autorizado, ou seja, de uso permitido. Entretanto, destes, mais de uma centena deles são proibidos na União Europeia, precisamente 149.” A fonte para os 149 pesticidas permitidos no Brasil e proibidos na UE é uma tese da Universidade de Lisboa, citada na Bibliografia do Atlas.

Essa afirmativa é muito séria, poder-se-ia deduzir que o Brasil virou a lata de lixo do mundo. Porém, consultadas as fontes oficiais, especialmente o Diário Oficial da União, vamos aos fatos reais.

Dos 149 produtos listados, 40 são monografias referentes a produtos para uso doméstico, e algumas monografias foram excluídas. Do restante, 66 possuem, efetivamente, registro no Brasil, outros 40 não estão registrados aqui.

Dos 66 registrados, nove deles nunca tiveram o registro solicitado na UE. Logo, jamais seriam proibidos. E que tal comparar a Europa com outros países, e não apenas com o Brasil? Tomemos Austrália, Estados Unidos da América, Japão e Canadá, reconhecidos pela severidade de sua legislação fitossanitária. Dos 66 pesticidas citados – e registrados no Brasil -, 56 são registrados ao menos em um desses países; 48 em dois deles; 31 em três; e 15 nos quatro países.

Não existe dose segura de pesticida – Vamos a um terceiro exemplo. Um jornal de grande circulação publicou um estudo do Instituto Butantã. A afirmativa contida na matéria seria apavorante: “Uma análise de dez agrotóxicos de largo uso no País revela que os pesticidas são extremamente tóxicos ao meio ambiente e à vida em qualquer concentração – mesmo quando utilizados em dosagens equivalentes a até um trigésimo do recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.

Encomendado pelo Ministério da Saúde e realizado pelo Instituto Butantã, o estudo comprova que “não existe dose mínima totalmente não letal para os defensivos usados na agricultura brasileira”.

Para estabelecer a dose diária aceitável de qualquer substância química, aquela que uma pessoa pode ingerir durante sua vida sem apresentar risco à saúde, são realizados testes exaustivos, seguindo rígidos protocolos. São utilizadas doses crescentes da substância, seja ela um remédio ou um pesticida, aplicados durante toda a vida das cobaias. Analisando todos os testes, é identificada a maior dose que não ocasionou qualquer problema aos organismos em teste. Essa dose é dividida por 100, para ser obtida a dose diária aceitável.

Repetindo: a dose diária aceitável representa apenas 1% da maior dose que não causou qualquer problema de saúde. Dessa dose deriva o conceito de limite máximo de resíduos, ou seja, a quantidade de resíduos que permanece em um produto agrícola, que não causaria qualquer problema de saúde a uma pessoa, mesmo ingerindo este alimento todos os dias de sua vida.

Para finalizar, deixo para reflexão dos leitores este texto que ouvi em uma aula do meu professor de latim, Renato Wendling, há 60 anos, que muito me marcou e auxiliou ao longo da vida: “Ne sutor ultra crepidam (Não suba o sapateiro além da chinela)”.

Pode ser lenda, afinal, lá se vão mais de 2.300 anos. O famoso pintor grego Apeles, a quem devemos o retrato de Alexandre, o Grande, costumava expor suas pinturas na praça pública. Escondia-se atrás dos quadros para ouvir a opinião dos que por ali passavam. Quando concordava com as críticas, retirava as suas obras, refazia-as e voltava a exibi-las para novos comentários.

Certo dia, um sapateiro notou um defeito no chinelo de um dos figurantes na tela e não poupou críticas. O pintor aceitou a crítica, voltou ao estúdio e corrigiu a pintura. Tornou a expô-la, e o mesmo sapateiro retornou no dia seguinte, e aí criticou a cor da camisa de Alexandre. Apeles saiu de trás do quadro e teria, então, pronunciado a célebre frase “Não suba o sapateiro acima da sandália”.

Dito de outra forma, cada macaco no seu galho. Eu, agrônomo, jamais me aventuraria a discutir terapias para distúrbios glandulares, por reconhecer que não disponho de conhecimentos suficientes para afirmações abalizadas – no máximo cometeria um “achismo”.

 

Decio Luiz Gazzoni é membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja

 

Críticas são sempre bem-vindas, mas toda crítica construtiva deve se compor de fundamentos sólidos

“Não suba o sapateiro acima da sandália”. Dito de outra forma, cada macaco no seu galho