Variedades

Os pedófilos de nossa infância

No grupo de mães de meus filhos, devo ter fama de mãe chata, aquela que não se mistura, e não sem razão. Não vou nos parquinhos nem nos cinemas aos finais de semana quando uma mãe anuncia no whatsapp que está indo para certo lugar. Sou melhor que elas? Em hipótese alguma, só sou a mais velha e por isso consciente de que mulher, com filho ou não, continua sendo mulher e isso que dizer que cedo ou tarde as fofocas terão início. Errei? Não, logo depois a mãe A não falava mais com a B que acabou comprando as dores da C. As festas de aniversários passaram a ficar divididas. Quem convida A não pode convidar B nem C. Pronto, tá feito o estrago. Se o desejado é vida longa às amizades escolares, o melhor é manter-se à periferia dos acontecimentos e compartilhar o mínimo necessário para manter a relação e a magia da infância de nossos filhos.

A partir desse constrangimento, de chata passei a ser território neutro, aquela que não é amiga nem inimiga de ninguém. E quando começou essa coisa de filho dormir na casa do coleguinha – desde que A não dormisse na casa do B e a D nem cruzasse perto de F – para as mães minha negativa não deve ter sido nenhuma surpresa.

"Não adianta convidar porque ela não os deixa”.

É, não deixo mesmo, sou aquela que não se mistura, lembra? Mas o que me move, nesse caso, já é outra questão. Homens que me perdoem, casei com um e dei ao mundo mais dois, mas sempre acho que um em cada três pais, se não é pedófilo convicto pode ter um momento de deslize. Sabe aquela coisa de a ocasião faz o ladrão? Pois é.

"Que coisa horrorosa!" podem dizer. "Como você pensa numa coisa dessas?"

Penso porque já fui criança, e hoje quando lembro isso tenho a impressão de que metade dos homens que morava na minha rua era composta por homens abusados, tarados mesmo, por que pedofilia era um tempo que ninguém conhecia.

Se fui abusada? Acho que toda a menina de antigamente – época em que se brincava com os vizinhos no meio da rua – já passou por algum tipo de abuso. Não falo de adulto e criança em cima de uma cama, mas de algo coisa mais sutil, o legítimo abuso da falta de malícia de um ser ainda inocente.

O marido da tia da Daniela, o pai da Nádia, o irmão mais velho da Cibele, o avô da Cibele.… Ahhh!! o vovozinho de cabelos brancos e olhar gentil. Eu adorava brincar com ele, sempre disposto a nos fazer cócegas, homem que se divertia nos retirando dos galhos mais altos da seringueira que tinha na na frente da casa dela, isso sempre passando a mão naquilo que mais tarde seriam nossos seios. Já o pai da Nádia gostava de brincar de cavalinho e o tio da Daniela dizia, ao pé do meu ouvido, que me amava. Tinha outro que ficou pouco tempo, irmão de uma garota que se quer lembro o nome, um rapaz que vivia dando tapinhas em nossas nádegas. E tinha o tarado, conhecido por “tarado" mesmo, desses que fica pelado na sacada assobiando para as meninas que passavam na rua, episódio que deu até polícia uma vez, mas o perigo oculto, aquele que entremeava as inocentes brincadeiras dos adultos com as crianças, essas quase sempre passou despercebido. As mães, cada uma na sua casa, achavam que o pai da amiguinha estava dando conta da gurizada. Outros tempos, outras preocupações. Enquanto isso a gente brincava na rua e tudo era mais solto, não existiam os condomínios de hoje e o controle mais feroz dos pais sobre abusos muito menos essa coisa de Estatuto da Criança.

Lembro que os toques não eram fortes nem grosseiros, carinho pouco comum mas nada digno de nota tanto que nunca contei para minha mãe. Lá pelos meus 15 anos é que fui me dar conta de que aquela conduta não era nada, digamos, cristã. Por isso que sei que a pessoa que abusa não tem cara de abusadora, e como explicar a cara de padre do tio da Daniela, aquele que dizia que me amava? E fico pensando se sua presença na vida dela não contribui para sua precoce gravidez aos 14 anos.

Isso faz 40 anos, e agora a modernidade e diz que homem pelado ao lado de crianças é arte. Às vezes a sociedade parece caminhar de costas, e nunca é bom dar as costas para o inimigo. Até uma pessoa sem grandes estudos sabe que criança achar normal tocar em homem pelado boa coisa não é. Quem sabe deixemos os pequenos serem apenas crianças? Quem sabe permitimos a eles a inocência ser descortinada lentamente, não com dedos em genitália como foi o caso de menina dentro de um movimentado supermercado no Rio Grande do Sul. Esse filme, o da suposta confiança, o do normal, o do titio amável, eu já vi, e mais de uma vez. E por mim que se danem os comentários das mães: da minha casa, meus filhos não saem, e se não vão se quer para dormir na casa de colegas, o que dirá para tocar em homem estranho e sem roupa. Não, não dá, é cegueira coletiva. Prefiro ser a que não se mistura a ver um filho ser abusado com minha irresponsável autorização. Se homem pelado é arte, prefiro que meu filho siga ignorante.