Opinião

O verdadeiro abuso dos juízes que combateram a corrupção

Opinião de Deltan Dallagnol

“Uma vez um juiz julgou quem havia ditado a lei. Primeiro mudaram o juiz. Logo em seguida mudaram a lei.” (Fabrizio De André) Não haveria melhor síntese do que acontece hoje no Brasil, não fosse essa epígrafe uma descrição da Operação Mãos Limpas na Itália, irmã mais velha da Lava Jato. Ambas as investigações, filhas da busca pela democracia e do desejo de um país mais honestos, sofreram o mesmo destino. Isso porque, como na Itália, no Brasil há uma perversa associação do poder político e do econômico para roubar o país. O capitalismo de compadrio distribui cartas marcadas. No seu jogo, eles nunca devem perder. Entretanto, procuradores, juízes e policiais ousaram usar a lei para desafiá-los e, em alguns momentos, venceram.

Contudo, se os poderosos perdem, mudam as regras. Quando há ladrões com poder político, a lei se torna um instrumento ineficiente para enfrentar a roubalheira. Vitórias não são sustentáveis, pois a lei é argila esculpida por mãos corruptas. Mais cedo ou mais tarde, eles moldam a lei a seu gosto.

No início da Operação Mãos Limpas, no auge da indignação popular, surgiram projetos de lei contra a corrupção. Contudo, no debate parlamentar, o combate ao crime foi substituído pela discussão de supostos “abusos de autoridade” praticados por juízes e procuradores. Em seguida, o sistema corrupto virou o jogo e aprovou leis em favor da impunidade.

Aqui, dentre outros retrocessos no esforço anticorrupção, a independência das instituições foi colocada sob ameaça pela nova lei de abuso de autoridade. Agora, autoridades que ousarem enfrentar poderosos responderão por essa audácia como se fossem eles os criminosos. É uma inversão de papéis.

É certo que a lei de abuso de autoridade anterior, de 1965, estava defasada, sendo necessária sua revisão para ampliar crimes e endurecer penas. Todavia, sob esse pretexto, dentre outras regras que constituem avanços, foram criados crimes que prejudicam a atuação legítima contra criminosos com poder.

A nova lei criminaliza, por exemplo, a realização de uma prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. É crime também deixar de soltar alguém sujeito a prisão manifestamente ilegal ou de deferir habeas corpus quando manifestamente cabível. É claro que ninguém deve ser preso injustamente. Contudo, o que é uma prisão “manifestamente incabível” é uma questão de interpretação e retórica. Como diz o ditado, “cada cabeça, uma sentença”. Pessoas razoáveis discordam razoavelmente sobre a interpretação da lei e dos fatos e podem defender com ênfase suas posições.

Isso coloca juízes debaixo de um risco desproporcional quando decretam a prisão de poderosos. A experiência mostra que estes têm acesso aos tribunais por meio de hábeis advogados e podem ter sua prisão revertida mais facilmente. Eles passam a ter em suas mãos, agora, a faculdade de retaliar.

A administração da Justiça é uma das funções mais essenciais do Estado, assim como a liberdade de expressão é um dos pilares da democracia. Ninguém cogitaria criminalizar a emissão de críticas “manifestamente incabíveis ou improcedentes” porque esses são conceitos abertos que permitem o arbítrio contra vozes discordantes do poder – risco que correm agora os agentes da lei. A tipificação criminal da prisão “manifestamente infundada” congela a independência dos agentes da lei. Eles terão razões para temer o enfrentamento dos verdadeiros abusos praticados por donos do poder.

Junte-se a isso a criminalização das condutas de instaurar investigações “sem justa causa fundamentada”, de “estender injustificadamente a investigação” e de bloquear bens de criminosos em valor que “extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida”. Esses conceitos vagos favorecerão réus poderosos.

Além disso, há outras regras igualmente preocupantes. Primeiro, a lei permite que o próprio réu acuse as autoridades por abuso de autoridade, quando o Ministério Público não se manifestar tempestivamente sobre a investigação. Em um contexto de promotorias assoberbadas de trabalho, abre-se ampla margem para que os réus se vinguem dos policiais, procuradores e juízes. A lei criminaliza acusações infundadas feitas por autoridades e não por réus.

Segundo, as mudanças feitas pelo Congresso no pacote anticrime tornaram ainda mais rígidos os requisitos para a prisão, exigindo “fatos novos” ou “contemporâneos” para sua decretação, matéria de interpretação que certamente será controvertida. Esse ambiente de incertezas tende, de novo, a deixar juízes menos propensos a decretar prisões, especialmente de pessoas influentes.

Com isso tudo, nota-se que a lei de abuso estabeleceu riscos assimétricos: deixou de criminalizar a conduta da autoridade que favorece indevidamente o réu. Não é crime, por exemplo, deixar de decretar uma prisão manifestamente cabível, ou deixar de iniciar uma investigação claramente necessária. A lei prestigia o potencial criminoso em prejuízo das vítimas. O foco unilateral amedronta o agente público que agir de forma contrária aos réus. Desequilibrou-se a balança da justiça em favor dos investigados. Sendo eles influentes, os riscos são majorados e, consequentemente, os receios também. A assimetria do tratamento levanta um questionamento legítimo sobre o desvio de finalidade (propósito deturpado) da lei.

Apesar da ressalva de que a divergência na interpretação das regras, de fatos e de provas não caracteriza crime, exigindo ainda, para se configurar o crime, que a finalidade do agente seja prejudicar outrem, beneficiar alguém, realizar um mero capricho ou alcançar satisfação pessoal, todos esses conceitos são imprecisos o suficiente para permitir retaliações.

Acredito que o efeito mais nefasto da lei não serão os processos contra as autoridades, mas a silenciosa e imperceptível autocontenção do trabalho legítimo contra delinquentes com poder.

Ninguém deve ser submetido por autoridades a apurações ou prisões infundadas. Para assegurar isso, já existem diversos recursos legais. A criminalização efetuada é desproporcional e viola a mínima garantia para autoridades que investigam, acusam e julgam em qualquer lugar do mundo, que é a proteção contra a vingança dos investigados, acusados e condenados.

Dito tudo isso, é preciso reiterar uma ressalva: respeito o Congresso e o STF, instituições essenciais para a democracia brasileira. Ao criticar suas leis e decisões, não estou afirmando que cada parlamentar ou ministro que apoiou certa decisão ou lei é desonesto ou busca proteger corruptos. Não estou julgando intenções. Analiso, sim, os efeitos práticos das leis e decisões sobre investigações e processos e seu impacto no sistema de incentivos e desincentivos à prática da corrupção no país. Reconheço ainda a existência de forças de avanço e de retrocesso, que não necessariamente estão na gênese das referidas leis e decisões, mas podem influenciar o ambiente em que surgem e o curso da história. A política é o único caminho para a solução dos grandes problemas brasileiros, dentre eles a corrupção, embora nosso ambiente político precise ser bastante aperfeiçoado. Além disso, há muitos políticos honestos que merecem ser valorizados, descabendo generalizações. Por fim, entendo também que críticas, mesmo severas, contribuem para o aperfeiçoamento das instituições. O silêncio e a omissão são aliados da corrupção e da injustiça.

Há ações que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal que pleiteiam a inconstitucionalidade dessas regras da lei de abuso de autoridade que promovem retrocessos. Bem fará o Supremo se as derrubar. Agora, a principal lição a aprender é de que o combate à corrupção só se fortalecerá – ou mesmo sobreviverá – por meio de uma participação mais ativa da sociedade na política.

Tudo isso surgiu após a Lava Jato ter responsabilizado pessoas influentes. Como na Mãos Limpas, este foi o verdadeiro “abuso” das autoridades na Lava Jato: colocar debaixo da lei quem se entendia acima dela.

Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato no Ministério Público Federal em Curitiba – artigo publicado na Gazeta do Povo em 10/02/2020