RIO – Encaminhando-se para seus momentos finais (o encerramento acontece neste domingo), o Festival de Sundance 2017 apresentou uma programação com uma identidade bem definida. Elogiada pela imprensa estrangeira, a seleção de filmes exibidos pareceu focar, de maneira geral, nos desafios da unificação ? no âmbito familiar, cultural ou, de forma mais ampla, entre os seres humanos. “Alguns dos títulos mais proeminentes fornecem um barômetro das maiores ansiedades da sociedade americana, ao mesmo tempo apontando para um novo caminho”, afirmou o site “Indiewire”, dedicado à cobertura do cinema independente, o escopo principal de Sundance.
Ironicamente, o festival começou justamente na véspera de um acontecimento considerado sombrio por parte da classe artística, em especial a cinematográfica: a posse do presidente americano Donald Trump, no último dia 20. Nesse dia, a atriz e apresentadora Chelsea Handler comandou a Marcha das Mulheres nas ruas de Park City, no estado de Utah, onde acontece o evento. O protesto, que ocorreu em várias partes dos EUA, lembrou da importância da igualdade de gênero e teve uma mensagem principal: a sociedade não será dividida, a despeito das propostas e comentários feitos por Trump durante a campanha presidencial, muitas vezes considerados misóginos e preconceituosos pelo eleitorado contrário a ele.
Um dos filmes que ganharam mais repercussão foi “The big sick”, de Michael Showalter, até o momento com 100% de aprovação no Rotten Tomatoes, site que compila a avaliação de críticos. Trata-se de uma comédia sobre um humorista paquistanês-americano que se apaixona por uma moça dos EUA, apesar da exigência da família do rapaz de que ele se case com uma pessoa de sua origem. O tema, aqui, é o choque cultural e os desafios para superá-lo, e é um dos exemplos de um Sundance mais politizado. Ainda segundo o “Indiewire”, “The big sick”, ao lado de outras obras projetadas no festival, como “Landline” e “Patti Cake$”, captura as “principais frustrações de se estar perdido em problemas pessoais, num mundo indiferente”, e aborda a “necessidade de se encontrar consolo no companheirismo”. Trailer de ‘Get out’
Numa edição politizada pautada também pela preocupação com os rumos do país (e do mundo), é conveniente a sessão de “An inconvenient sequel: Truth to power” (2017), que, como o título já indica, é uma continuação do documentário oscarizado “Uma verdade inconveniente” (2006), que acompanhava o ex-candidato Al Gore em sua campanha para chamar atenção para os perigos do aquecimento global. O longa foi recebido com duas rodadas de aplausos. Para a crítica, o documentário “cementa a urgência da mensagem de Gore e da procura pela esperança”, disse a revista “Hollywood Reporter”.
Mas vieram de ficções com premissas fantasiosas ou até mesmo extremas as parábolas sobre temas como união e racismo. Em “A ghost story”, de David Lowery (o mesmo da aventura “Meu amigo, o dragão”, de 2016), por exemplo, o personagem de Casey Afflek é um fantasma que assombra a casa de sua viúvia (interpretada por Rooney Mara). A premissa inusitada serve de gancho para explorar assuntos mais abragentes e relevantes para qualquer ser humano, diz o site “AV Club”: “É uma meditação sorrateira sobre vida após a morte, a resistência de uma conexão amorosa e o valor que imprimimos aos lugares que ocupamos”, afirmou o crítico A.A. Dowd.
Por fim, “Get out”, de Jordan Peele, vem sendo considerado uma das maiores surpresas desta edição de Sundance. A sinopse oficial avisa apenas que a trama trata da visita de um jovem negro à misteriosa família de sua namorada caucasiana. Na verdade, é uma história sobre pessoas negras que sofrem lavagem cerebral enquanto mantidas em cativeiros por gente branca e rica. Para a “Variety”, “Get out” combina uma sátira de terror com uma “bombástica crítica social”. Já o “Indiwire” acrescenta: o filme “consegue usar a sua premissa absurda para explorar o racismo velado, e oferece uma forma satisfatória de escapismo no qual o homem negro se vinga contra um mundo ameaçada pela sua individualidade”. E conclui com uma mensagem esperançosa: “Logo após a eleição, muito se tem dito sobre a necessidade de progressistas se aproximarem de outras pessoas que não concordam com suas opiniões. Mas o clímax de ‘Get out’, que coloca brancos loucos contra heróis negros, assegura que sair da bolha não significa se remoer em ódio.”