RIO – No dia 8 de junho de 1990, Robert Darnton entrou pela primeira vez na sala do setor de ficção da Administração Central da Publicação e do Comércio de Livros da República Democrática da Alemanha (RDA), na Berlim Oriental. Sete meses após a queda do Muro e quatro meses antes da reunificação das duas Alemanhas, o historiador americano, que já estudava a censura há anos, pôde pela primeira vez entrevistar quem decidia o que era ou não publicado no país. Ao perguntar para o censor Hans-Jürgen Wesener como ele via o seu trabalho, a resposta foi desconcertante: ?planejamento?, disse Wesener. No socialismo, assim como a economia, a literatura também deveria ser planejada pelo Estado.
Essa é uma das revelações surpreendentes narradas no livro ?Censores em ação? (Companhia das Letras), em que Darnton busca compreender como funcionava a censura e o que pensavam os censores em três regimes e tempos históricos distintos: a França dos Bourbon no século XVIII, o Raj britânico na Índia do século XIX e a Alemanha Oriental no século XX. A obra, lançada nos Estados Unidos em 2014, é o resultado de décadas de pesquisa sobre o tema em arquivos da França, Inglaterra e Alemanha. O historiador conta que o tema apareceu inicialmente nas suas investigações sobre a França do Antigo Regime. Ao analisar os documentos guardados na Bastilha, em Paris, a todo momento surgiam ofícios de censores.
? Eu gostaria de dizer que planejei tudo, mas a maior parte disso foi fascinação. Eu sou um historiador fora de moda, amo a imersão nos arquivos. Ano após ano em Paris eu continuava esbarrando em censores. Talvez por causa do meu apreço pelas liberdades civis, sempre fui sensível a esse tema. No início, parti de um clichê simples e comum, de que os censores sufocavam a liberdade. Mas quando li a correspondência desses censores, percebi que eles tinham orgulho do que faziam. De muitas maneiras era uma censura positiva, que melhorava os livros. Um deles escreveu: ?estou defendendo a honra da literatura francesa? (risos). Essa é uma coisa muito estranha para um censor dizer ? afirma Darnton, em entrevista ao GLOBO por telefone.
Na França dos Bourbon, imprimir um livro era um privilégio concedido pelo rei. Para receber esse privilégio, era necessário conseguir o parecer de um censor. Só que não havia uma burocracia dedicada a esse trabalho, como na Alemanha Oriental. Os censores eram outros escritores, acadêmicos, intelectuais, cientistas. Em muitos casos, censores e autores se conheciam e até discutiam juntos passagens das obras. O papel do censor era particularmente delicado porque seu nome e seu parecer eram publicados no início do livro. Logo, funcionavam também como uma espécie de chancela do conteúdo. Caso o censor deixasse passar alguma crítica ao monarca ou à Igreja, poderia ter tantos problemas quanto o autor da obra. Outra preocupação dos censores era não melindrar os seus pares. O historiador encontrou um caso em que um livro científico não foi aprovado porque suas ideias iam contra àquelas defendidas pela Academia Francesa.
Para fugir desse controle, uma das estratégias era a impressão das obras no exterior e, posteriormente, contrabandeá-las para a França. O governo francês chegou a criar uma polícia do livro para apreender essas obras e punir seus responsáveis. Contudo, as tentativas de controle, seja da impressão ou do contrabando, nunca obtiveram êxito completo.
? A maior parte dos livros que pensamos como a literatura francesa do século XVIII nunca foi submetida aos censores. Quase todos os livros do Iluminismo foram impressos fora da França e circularam dentro do país por meio de um subterrâneo literário muito sofisticado. Havia repressão, uma polícia dos livros, pessoas eram enviadas para a Bastilha. No entanto, toda natureza do sistema é um tanto diferente do que você poderia imaginar se acreditasse simplesmente que a censura é a história da repressão contra a liberdade. Na verdade, essa história é muito mais complicada ? diz Darnton.
Um exemplo da complexidade dessa história é a experiência do Raj britânico na Índia. A partir de 1867, o Serviço Civil Indiano (ICS, em inglês), órgão responsável pela administração colonial, passou a registrar todos os livros publicados no subcontinente. O ICS produzia quatro catálogos por ano a partir de memorandos de bibliotecários de província. Todos os editores eram obrigados a fornecer três exemplares das obras lançadas e a preencher um formulário com uma série de informações sobre cada uma delas. Os catálogos traziam também comentários de funcionários da Coroa sobre os livros. Até o início do século XX, cerca de 200 mil obras foram ?indexadas? pelo ICS.
Não havia, então, censura na Índia. Só em 1905, quando estourou a primeira revolta anticolonial na Índia, a administração britânica se voltou para o enorme banco de dados que havia criado e descobriu que muitos dos livros que agitavam os nacionalistas estavam registrados no ICS. A enorme quantidade de informações sobre autores e editores serviu de instrumento para a perseguição política.
? O conceito de vigilância, elaborado por Michel Foucault, é muito relevante no caso da Índia britânica. O Raj realmente achava que podia rastrear tudo o que era impresso no país. É um arquivo incrível. Eles estudaram 200 mil livros, uma quantidade enorme. Primeiro eles deixaram as obras serem publicadas e, salvo algumas exceções, não as reprimiram. Mas, após a revolta nacionalista em Bengala, começou a repressão, com as prisões e os julgamentos que se seguiram ? conta o historiador.
Darnton é um ardoroso defensor das liberdades civis e um crítico severo das formas de controle implantadas nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. Ele ressalta que ?a história não ensina nada?, mas as experiências do passado podem servir de alerta para o presente.
? A história pode aguçar nossa sensibilidade para os perigos. Na era da internet, o governo tem uma capacidade enorme de vigiar as nossas menores ações. O perigo da censura é muito maior agora. Não sei no Brasil, mas, quando olho para o poder do governo dos Estados Unidos e a reação desproporcional à tragédia do 11 de Setembro, vejo ameaças reais às liberdades civis ? argumenta. ? Se o livro aguçar a preocupação das pessoas em relação aos perigos e às ameaças à liberdade de expressão, ótimo. A vigilância é um primeiro passo para a repressão e é algo de que nós cidadãos devemos estar cientes.
As nefastas consequências da censura em uma sociedade, aponta o historiador, podem ser identificadas no caso da Alemanha Oriental. No país comunista havia uma enorme burocracia para ?planejar? a literatura nacional. O organograma desenhado no livro mostra que, entre o secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista e os censores com quem Darnton conversou, havia quatro níveis hierárquicos intermediários, mobilizando centenas de funcionários. Uma verdadeira máquina destinada a produzir uma cultura adequada às diretrizes partidárias. Contudo, mais eficiente do que toda essa estrutura era a censura exercida pelos próprios autores e seus editores, entre os quais muitos ocupantes de altos postos no partido.
? Os funcionários que entrevistei me disseram que a maior parte da censura não era feita por eles, mas pelos editores de livro. Os editores eram censores também. Editar e censurar eram parte do mesmo trabalho. Todos os envolvidos na cadeia do livro eram censores. Publishers, editores, resenhistas. A censura na Alemanha Oriental atravessava a literatura em todos os níveis. Os censores oficiais eram apenas parte de um sistema muito maior. Um dos escritores mais famosos do país, Volker Braun, disse uma vez que ?o sistema censura?, e ele estava certo. Era isso.
“Censores em ação”
Autor: Robert Darnton
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Rubens Figueiredo
Preço: R$ 69,90