DIREITO DA FAMÍLIA

Desamparo após uma vida de cuidado

O cônjuge sobrevivente é figura bíblica de representação de solidariedade e empatia, aquele que deve ser amparado pela comunidade

O cônjuge sobrevivente é figura bíblica de representação de solidariedade e empatia, aquele que deve ser amparado pela comunidade. No entanto, com modificações sociais, essa figura perde suas características, assim como o casamento se dessacraliza, podendo ser dissolvido pelos próprios homens. Na pluralidade dos casamentos, os conflitos inerentes a muitas relações se dá entre os filhos e o novo cônjuge.

Não é incomum, em caso de falecimento, o desejo do desamparo ao viúvo/viúva por parte dos enteados, exigindo a saída do lar conjugal. A lei, nesse sentido, assegurou ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação, isto é, o direito de residir no lar conjugal por toda sua vida, sem a necessidade de contraprestação pecuniária (pagar aluguel) aos demais herdeiros.

Herdeiro, a palavra do momento. O projeto de alteração do Código Civil (a lei que regula as relações pessoais, desde o nascimento até o falecimento) propõe que o cônjuge não seja mais herdeiro, em qualquer regime de bens. Uma pauta delicada que tem gerado dúvidas e controvérsias, diante dos institutos de meação e herança.

A depender do regime de bens escolhido pelo casal, existem bens comuns e bens particulares (bens que são de ambos – ainda que sejam registrados em nome apenas de um – e bens que são exclusivos de cada cônjuge, como bens anteriores ao casamento, herança, doação, para o regime de comunhão parcial de bens).

Em sede de divórcio, partilham-se apenas os bens comuns (a chamada meação – dividir ao meio); porém, em caso de falecimento, o viúvo/viúva pode ser meeiro dos bens comuns e herdeiro de bens particulares. Com a alteração proposta, em discussão no Senado, o cônjuge sobrevivente será apenas meeiro, quando houve bens comuns. Ou seja, em caso de regime de separação de bens, em que não existem bens comuns, o viúvo/viúva sairá de mãos abanando.

Ainda que seja possível que se alcance este cônjuge por meio de testamento, para que não fique desamparado, o impacto sobre as mulheres por certo será maior, diante da estrutura patriarcal arraigada à sociedade. Por mais que a lei não faça diferenciação de gênero, o desamparo a mulheres que vivem sua vida para o cuidado e que não constroem patrimônio próprio (por não terem trabalho remunerado) é notório.

Os indivíduos teoricamente emancipados pela sua razão afastam-se cada vez mais das tradições, das raízes, dos apegos familiares e das fidelidades pessoais. A contratualização é a evidência dos valores humanos dispostos no mercado, em que curiosamente, o amor e o cuidado não são vistos e sequer remunerados. Mulheres, ensinadas a cuidar, são as mais punidas em uma realidade de relações superficiais, voltadas ao cumprimento de satisfações pessoais.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito