Ainda que as mulheres tenham a potencialidade de gerar a vida, é comum que estejam ameaçadas pelas regras patriarcais criadas pelos “pais da destruição”. As autoras Vandana Shiva (indiana) e Maria Mies (alemã) reforçam que as mulheres vivem em estado de sítio permanente, tendo em vista que sua liberdade e seus direitos são constantemente limitados estruturalmente, ou seja, a guerra contra os direitos das mulheres não se limitam aos períodos de conflito armado, estando embutida na ordem social.
A discussão sobre os corpos femininos havia ficado adormecida por alguns meses, mas voltou à tona nessa semana com a aprovação da PEC 164/2012 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Embora essa votação não versasse sobre o mérito, mas apenas à admissibilidade jurídica (se está em conformidade com a lei e a Constituição), vários discursos sobre o tema, mesmo que contraditórios, foram aventados pelos legisladores.
Desde a concepção
O projeto de emenda constitucional visa incluir a expressão “desde a concepção” para ampliar a inviolabilidade ao direito à vida, trazendo inúmeras consequências jurídicas em outras searas. Deputados defensores do projeto migraram desde a justificação divina até uma escolha ética e, por que não, científica (mesmo que as pesquisas científicas não tenham ainda determinado o início da vida e tenham dificuldades sobre a morte).
Diante da crise de legitimidade política e racionalista atual, abre-se espaço a padrões alternativos de fundamentação dentro de uma sociedade notoriamente patriarcal, paternalista e autoritária. O direito, ditado essencialmente pelos interesses de alguns dentro da sociedade, abraça a possibilidade de regulamentação social e manutenção da ordem e os parlamentares podem “brincar de deus” e definir conceitos metafísicos em nome de todos e em prejuízo de muitas.
No frigir dos ovos, a defesa ferrenha à inviolabilidade da vida do nascituro (ainda que este não seja juridicamente sujeito de direito) traz consequências nefastas aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, além de colocar em risco a vida de milhares de jovens. O projeto visa, no fim e ao cabo, impedir qualquer proposta de legalização do aborto e põe fim aos permissivos legais previstos no Código Penal (em caso de risco à vida da gestante, por gravidez decorrente de estupro e em caso de fetos anencéfalos), sendo que os dados apontam que os maiores índices de estupro ocorrem entre meninas negras, menores de 14 anos – seus corpos parecem não importar aos senhores deputados.
Células-tronco
Outra consequência de eventual aprovação final dessa proposta é a inviabilidade de pesquisas com células-tronco, bem como as políticas de saúde reprodutivas, como técnicas de reprodução assistida, em evidente retrocesso aos avanços científicos recentes.
A luta é permanente para evitar que o país, à revelia das recomendações internacionais, viole os direitos femininos conquistados a duras penas nas últimas décadas. Para os conservadores que defendem o projeto e, concomitantemente, falam em liberdade, que haja coerência em seus argumentos que prejudicam a autonomia das mulheres, em descaso à sua dignidade e que podem privilegiar, em verdade, direitos de estupradores.