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Por que o casamento é "obrigatório" para um dos povos originários da Bolívia

Segundo cosmologia aimará, uma pessoa só é considerada como tal quando forma um par com outra, assim como no filme O Lagosta

Por que o casamento é "obrigatório" para um dos povos originários da Bolívia

No filme O Lagosta, de 2015, o diretor grego Yorgos Lanthimos mostra um futuro distópico em que os solteiros não têm lugar na sociedade, porque quem não consegue encontrar parceiros são reclusos e obrigados a encontrar alguém entre os demais excluídos. Quando não têm êxito, são vistos como animais.

Pensando no modo como os aimarás, uma das maiores comunidades indígenas dos Andes sul-americanos e que hoje correspondem a 1,5 milhão da população da Bolívia, por exemplo, observam a ideia de um casal — o vivo e o não-vivo, o visível e o invisível –, existe uma grande possibilidade de que essa sociedade tenha se desenvolvido e se convertido, com pouca dificuldade, como a sociedade de O Lagosta.

Um aimará não concebe uma sociedade que não tenha casais e, em consequência, não tenha famílias. O universo, para a cosmologia aimará, é sempre dual: homem-mulher, acima-abaixo, água-terra, etc. E de maneira muito similar à visão asiática do ying-yang, desenha um cosmos em que a totalidade dos seus elementos exerce uma função mutuamente complementária. Há até um termo específico para se referir à pessoa que fica sozinha, como pode ocorrer com um sapato ou uma luva sem par, por exemplo: ch’ulla. A palavra não tem tradução para outros idiomas porque significa, na língua aimará, que as pessoas são como os sapatos e as luvas: não têm valor se não estão em pares.

Outro exemplo é o termo usado pelos aimarás para se referir ao matrimônio: casar-se é jaqichasiña, cuja tradução literal é “se tornar uma pessoa “. Ou seja: quem não é casado na cosmologia aimará não é considerado uma pessoa, e sua opinião e participação na sociedade são vistas como inferiores aos casados — estes sim, pessoas.

Na florescente sociedade aimará urbana, o momento mais importante de interação e encontro familiar é a festa, principalmente a patronal. Por isso, quando se vê os convites para elas, sempre há casais posados com os trajes de casamento e os nomes de pessoas. “É por isso que um dos grandes mercados da Bolívia, por exemplo, é o de joias e bijuterias: não há um mês em que as vendas de anel de noivado ou aliança de casamento caiam significativamente em cidades aimarás como La Paz, por exemplo”, explica Katherine Rojas, boliviana que trabalha em São Paulo.

“O mesmo acontece com o mercado de fotografias de casamentos: é uma tradição das casas paceñas ter uma foto do dia em que se casou”, completa.

Entre os aimarás, mesmo os urbanos, é famosa a frase “laq’us paninipiniwa, janiw sapakiñapäkiti” (“até os insetos têm casais, as pessoas não devem ficar sozinhas”). A ideia do casal como base para um desenvolvimento de sucesso é tomada diretamente da natureza, pois nela existe reprodução a partir da interação. Assim, é considerado que os seres humanos também necessitam estar juntos para triunfar tanto como espécie como dentro da sociedade.

Essa visão prevalece desde os tempos imemoriais na sociedade aimará urbana, cujo crescimento vertiginoso a fez crescer em espaço, estética e economia, gerando uma identidade tão forte que as demais se tornaram satélites dela. No entanto, essa expansão, aliada à vinculação cada vez maior ao mundo globalizado, está colocando essa tradição em perigo: nos últimos anos, alguns aimarás mais jovens estão se inclinando às tendências mundiais pela primeira vez em séculos — afirmam, sem medo da pressão de sua sociedade, que não querem se casar nem ter filhos.

Antropólogos e sociólogos bolivianos afirmam que o resultado disso poderá se dar de duas formas: ou o jovem terminará negando a sociedade moderna e, por suas próprias razões, continuará o legado do casamento; ou — menos provável –, manterá sua visão, apesar das circunstâncias, e aí os países andinos veriam pela primeira vez em séculos uma geração rompendo de maneira deliberada e planejada com a dualidade tão presente em seus pais e avós. Se isso acontecer, a cosmologia indígena precisaria repensar a si mesma.