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Ousadia e reflexões, as marcas de Micale na campanha olímpica

RIO – Baiano de Salvador, Rogério Micale, 47 anos, viveu um dos grandes momentos de sua carreira no Figueirense, quando surpreendeu ao levar o time ao título da Copa São Paulo de Juniores, em 2008. Mas foi no Atlético-MG que ganhou projeção e chegou à base da seleção brasileira. O trabalho do clube mineiro o fez ser vizinho do Mineirão. Estava em casa, nas imediações do estádio, no dia em que o Brasil perdeu para a Alemanha por 7 a 1. Tenta a todo custo desvincular o jogo deste domingo, que pode representar a maior conquista de sua vida como treinador, da tragédia da Copa de 2014. Durante toda a trajetória olímpica, nunca se mostrou afeito a temas extracampo ou a assuntos elementares como escritas: sempre pareceu mais dado a propor reflexões profundas, sobre a forma de se pensar o futebol no Brasil.

? Não temos nada com o 7 a 1. É outro torneio, outro campeonato. Vou tentar tirar isso do grupo ? disse Micale.

Embora jovem e pouco conhecido, pareceu não se intimidar com os holofotes. Impôs ao time uma marca pessoal, um esquema ousado, que iniciou no 4-3-3 e termina a competição neste domingo no 4-2-4. Além de imprimir uma marca no trabalho tático, chamou atenção também por propor debates em relação ao futebol do país. Um de seus temas preferidos é a visão crítica à fixação por resultados no país, levando à interrupção sistemática de projetos no meio do caminho.

Para falar do tema, curiosamente, sempre citou a Alemanha, seleção que o destino colocaria em seu caminho no momento crucial.

? Falamos muito da Alemanha, mas queremos sempre os últimos seis meses da Alemanha, a conquista. Não aceitamos passar pelos outros onze anos e meio d a construção do projeto. A cada derrota, interrompemos, derrubamos o que foi construído e recomeçamos do zero. Assim, nunca temos a obra pronta ? afirmou.

Após os dois empates nas duas primeiras rodadas, contra Iraque e África do Sul, mostrou-se incomodado com as críticas. Lembrou que, à época da preparação, em Teresópolis, ouvia elogios e, de repente, em função apenas dos resultados, o humor em relação ao time virou. Naquela ocasião, saiu também em defesa de Neymar.

? Como mudamos rápido, em função de resultados. Precisamos mudar a forma de analisar futebol, contribuir para que o futebol avance no Brasil. Por exemplo, enquanto olharmos fatores comportamentais, faixa de capitão e outras coisas, não discutiremos o jogo, as questões essenciais – afirmou, após a posição de Neymar como capitão ser questionada em função do comportamento do atacante.- Estamos sempre buscando um vilão para destruir tudo.

Em tese, a tendência de um treinador pouco reconhecido e que se vê diante de câmeras e microfones seria optar pelo lugar comum. Micale arriscou. Admitiu, por exemplo, que sua ambição na seleção olímpica vai além da medalha de ouro. Aceitou assumir, publicamente, o compromisso com buscar um modelo de jogo que considera retrato da tradição e da escola brasileiras, em que o drible é elemento fundamental.

? Pode parecer muita pretensão minha, mas desde que cheguei à sub-20 do Brasil, minha meta era extrair o que temos de maior qualidade, de maior característica dos jogadores. Mudar um pouco a nossa forma de ver o jogo. Podemos absorver muita coisa que o futebol mundial tem mostrado, questões até de vocabulário, como compactação, jogo apoiado, amplitude, enfim, ter mais entendimento do jogo. Mas não podemos perder a essência, a individualidade. É uma coisa única do mundo e que os grandes clubes vêm buscar na América do Sul, no Brasil. O Barcelona é um exemplo, com seu trio de frente formado por Neymar, Messi e Suárez ? disse. ? Quero implantar um jogo organizado de forma a mostrar a qualidade do jogador. Eu não quero é atrapalhar esses caras.

Mesmo a algumas horas da disputa da medalha de ouro, jogo mais importante de sua carreira, Rogério Micale deixou no ar sugestões para o futebol no país. Por exemplo, deu a entender que o país poderia criar competições para jogadores recém-saídos dos juniores e, talvez, uma nova categoria na seleção para jogadores recém-formados, mas que demoram algum tempo para se enquadrar nas equipes principais.

? Não podemos pensar nestes jogadores apenas em função da medalha de ouro. Temos que vê-los como o futuro da seleção principal, maturá-los. Muitos poderão chegar logo à seleção principal. Mas o que vamos fazer com os outros? São todos jogadores com perspectivas de serem selecionáveis. Não vão vestir mais a camisa da seleção? E aí voltam no futuro? Há uma lacuna entre o sub-20 e a seleção principal. Será que não é motivo para pensarmos em algo? Acredito em futebol como um processo sempre evolutivo. Mas aqui estamos sempre recomeçando do zero ? avaliou.

Em muitos momentos da campanha no Rio-2016, Micale não precisou ser provocado a falar de um tema para propor uma reflexão abrangente. Por exemplo, quando tocou no assunto concentração. E lançou suas ideias.

? Temos que tentar quebrar esta ideia de que, muitas vezes, o jogador de futebol vive numa ilha, à margem da sociedade. Há o paradigma de que precisa ficar concentrado, isolado, sem receber ninguém. Gosto de ter os familiares por perto, para estarem juntos, vivenciarem as experiências. Nas horas difíceis, ninguém é mais importante em nossa vida do que a mulher, pai, mãe, filhos. É outro fator que precisamos repensar – disse, elogiando o elenco olímpico. ? Ganhei 18 filhos e amigos.

De fato, embora a CBF tenha optado sempre por hotéis afastados das regiões centrais das cidades neste Olimpíada, a comissão técnica sempre criou locais reservados para a convivência entre jogadores e parentes. Após a final deste domingo, seja qual for o resultado, o único evento de comemoração planejado é um jantar com as famílias de todos os membros da delegação.