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Na base da seleção, uma pequena torre de babel

201606071704184427.jpgO belga Andreas Pereira toca para Lucas de Vega, que praticamente não fala português. A bola chega ao italiano Emanual Vignato, que faz o gol do Brasil. Tal lance é imaginário, mas pode se tornar real em breve.

A globalização cria cidadãos do mundo, e a seleção sub-17, que passa por período de treinos na Granja Comary, tem sua porção torre de babel. O atacante Vignato, do Chievo, é italiano; Lucas de Vega, do Barcelona, saiu do Brasil aos 2 anos e cresceu na Espanha, terra do pai; e Gustavo Henrique, do Atlético de Madrid, deixou o país com três meses de vida quando o pai, o ex-jogador Paulo Assunção, foi jogar no Porto. Na seleção sub-15 está Pedro Neves, do Charlton, da Inglaterra. Sem falar em Andreas Pereira, 20 anos, do Manchester United, candidato a um lugar na Olimpíada. São produtos do futebol europeu. Não viveram qualquer etapa da formação no Brasil.

Hoje, a CBF luta para que estes jogadores não desistam da seleção brasileira. A dupla nacionalidade abre uma concorrência de países. Lucas, de mãe brasileira e pai espanhol, acaba de ganhar, há um mês, um torneio pela Espanha. Nas redes sociais, exibe fotos da conquista e da festa com companheiros no vestiário. O pai de Vignato, italiano, passava férias, em Fortaleza, quando conheceu uma brasileira, com quem passou a viver na Itália. O filho nasceu em Verona. Lucas e Vignato ainda não têm ideia de que país defenderão no futuro. Pelas regras, serão obrigados a decidir apenas quando convocados para um torneio oficial por uma seleção principal.

Em recente viagem à Europa, dirigentes da CBF conversaram com os pais e pediram autorização para que os jovens, menores de idade, viessem ao Brasil. Não são prometidas vagas cativas, mas há uma estratégia para convencê-los a ?experimentar? a seleção brasileira. Um departamento de captação foi criado para ?caçar? brasileiros pelo mundo. E, na última semana, federações como a alemã informaram ter pedidos de registros de filhos de brasileiros. As viagens podem se tornar mais frequentes. Para Lucas e Emanuel, por exemplo, os treinos em Teresópolis são como um ?test drive?.

? Explicamos que o jovem não precisa escolher agora. Queremos que ele veja como é a seleção brasileira, como se sente ? diz Erasmo Damiani, coordenador da base da CBF.

Diversos fatores pesam na escolha: do vínculo afetivo ao plano de carreira, que leva em conta onde há menos concorrência na posição. Emanuel diz não ter tomado suas decisão e não parece ter pressa. Já passou por um período de treinos e jogou um amistoso pela Itália.

? Não sei o que vou escolher, é difícil. Espero continuar sendo convocado pelas seleções. Aqui me senti feliz. Na Itália falam menos com os mais novos. Aqui, brincam mais ? diz o atacante, que fala português sem dificuldade e com sotaque nordestino. Em casa, conversa em português com a mãe e em italiano com o pai.201606071705074433.jpg

Não é o caso de Lucas, que fala poucas palavras em português. Por isso, passa boa parte do treino junto a Gustavo Henrique, volante do Atlético de Madrid e fluente no espanhol, mas também no português. Este último, ao contrário de Lucas, não precisa ser convencido.

? Eu me sinto 100% brasileiro ? afirma.

Criar um ambiente acolhedor em torno dos jovens é parte da rotina na Granja. Lucas é proibido pelo Barcelona de dar entrevistas, e a CBF obedece. Durante o treino, Damiani se aproxima do jovem e exibe uma mensagem do pai do jogador, perguntando como o filho está. Até fotos são enviadas para confortar a família.

Houve um tempo em que o Brasil debatia o risco de a exportação precoce mudar o estilo dos jogadores. Hoje, surge no horizonte a hipótese de uma seleção repleta de talentos produzidos na Europa. A CBF admite que, diante do risco da perda de identidade, tem um trabalho a fazer.

? Queremos que eles nos tragam o saber jogar, o pensar o jogo. Uma visão tática que se some ao jeito brasileiro de improvisar. Enquanto isso, vamos desenvolver um modelo de jogo para nossas seleções. No futuro, quem vier de fora vai se adaptar ? diz Damiani.

FÉRIAS NO BRASIL

O aprendizado na Europa excede a questão tática. Andreas Pereira recebeu a reportagem do GLOBO num hotel em Copacabana. Desde criança, o Brasil é onde passa férias. Mas diz que é onde se sente em casa. Após crescer na Bélgica, jogar na Holanda e ser comprado pelo Manchester United, fala cinco idiomas e incorporou o cuidado com a carreira: tem um preparador pessoal que, em sua casa, complementa a preparação física para prevenir lesões.

? Sou um meia que gosta de chegar na área. Se preciso, jogo pelos lados também. Acho que ganhei uma formação tática boa na Europa. Mas tenho coisas bem brasileiras que nasceram comigo ? diz Andreas Pereira.

Embora já tenha atuado pela Bélgica na base, diz ter convicção de qual é a sua seleção.

? A Bélgica é uma mistura de nacionalidades. Mesmo no colégio não era natural, você se sente um estrangeiro. Meu coração sempre foi brasileiro. Quando a Bélgica me convocou, eu jogava no PSV. Achava difícil um olheiro da seleção do Brasil ir à Holanda e me convocar. Eu e meu pai entendemos que o melhor era ser convocado até que o Brasil me descobrisse. Eu não sentia amor pela seleção belga. Era estranho ? conta Pereira, que acabou sendo notado pelo Brasil, de fato, ao atuar pelo Manchester United.

Filho do ex-jogador Marcos Pereira, que jogou pela Inter de Limeira antes de ser contratado pelo futebol belga, Andreas nasceu em Duffel, há 20 anos. Caso semelhante ao de Gustavo Henrique, 16, formado no Atlético de Madrid, onde o pai jogou por quatro anos.

? Acho que meu nível de exigência tática é europeu. Mas tenho coisas sul-americanas, difíceis de encontrar na Espanha? conta o volante. ? Pedem que eu seja o primeiro a fazer a saída de bola, não errar passe e ajudar a criar. Além de marcar. Buscam meias completos.