O snowboard só virou um esporte paralímpico em 2014, nos últimos Jogos de Inverno, em Sochi, na Rússia. A americana Amy Purdy foi medalhista de bronze, mas sua contribuição para a modalidade foi muito maior: sem ela, provavelmente o esporte sequer seria disputado na Paralimpíada. Aos 19 anos, ela contraiu meningite bacteriana e teve apenas 2% de chances de sobreviver. No fim, continuou viva, mas perdeu as duas pernas, as funções renais e a audição no ouvido esquerdo.
A vontade de praticar snowboard seguiu intacta, e, quando não encontrou próteses adequadas para a prática do esporte, resolveu montar a própria. A modalidade não parou de crescer desde então. Amy também não: ela foi vice-campeã do reality show ?Dancing with the stars?, nos Estados Unidos, e chamou a atenção dos produtores da cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos do ano passado.
Sua dança ao lado de um braço robótico, simbolizando a relação entre humanos e máquinas, roubou a cena. Este ano, ela estreou em uma escola de samba, a Unidos da Tijuca, cujo desfile foi marcado pelo acidente com um carro alegórico, que deixou 12 feridos.
Foi difícil aprender a sambar?
Muito. Foi difícil até escolher qual prótese usar. Eu testei várias diferentes, para ver qual delas me daria mais movimento. Acabei usando a de corrida, porque ela é mais leve, mas também me dá a quantidade exata de elasticidade. Só que a elasticidade dificultava o equilíbrio, então, eu tive que me esforçar muito para não cair enquanto aprendia todos os movimentos. O samba parece fácil, mas é mais difícil do que parece. O que eu gosto nele é que é quanto mais relaxado e mais no momento você estiver, melhor fica. Quando se tenta demais, parece forçado.
Você entende de próteses, afinal, foi você mesma quem montou sua primeira usada para praticar snowboard. Como foi?
A primeira perna protética que eu montei ficou quase um ?Frankenstein?: tem borracha, madeira, fita crepe… Ela está até exposta no Smithsonian (instituto de pesquisa nos Estados Unidos) agora. Mas eu era muito apaixonada por snowboard, então, queria descobrir uma forma de praticar o esporte. Tentei usar a que minha loja de próteses me deu, mas ela não tinha movimentos suficientes ? os tornozelos não se moviam de jeito nenhum, por exemplo. Na primeira tentativa, eu caí e a prancha desceu montanha abaixo com as minhas pernas nela. A partir daí, pensei: preciso manter as pernas presas em mim e fazer os tornozelos se moverem como deveriam. Então, fui para a minha loja de próteses e nós fizemos uma pesquisa extensa para encontrar pés que se moviam como eu precisava, mas não achamos nenhum. Eu gostava do tornozelo de uma das próteses, e da forma como outra encostava no chão quando eu andava. Quando consegui desvendar tudo isso, montei uma prótese com partes de várias outras e pude voltar a fazer snowboard de uma forma relativamente confortável. Desde então, encontrar a prótese perfeita tem sido um processo interminável. Semana passada mesmo eu testei uma nova.
Você pretende competir na Paralimpíada de PyeongChang, ano que vem?
Estou treinando, mas nós só sabemos se teremos vaga no time cerca de um mês antes de os Jogos começarem. Agora eu estou fazendo tudo que os demais atletas fazem: treinando e disputando campeonatos. Minha torcida é para ir aos Jogos novamente, mas, enquanto isso, faço várias outras coisas: sou palestrante motivacional e tenho oportunidades de vir ao Brasil como “enviada cultural” pelo Departamento de Estado americano, por exemplo.
O quão importante foi a primeira prótese que você montou para o crescimento do snowboard para deficientes? E para a chegada do esporte na Paralimpíada? Não seja modesta.
É difícil não ser. Existem várias outras pessoas envolvidas, e eu não poderia ter feito o que fiz se não houvesse outros atletas. Quando comecei a tentar montar, liguei para todas as fabricantes, e nenhuma delas tinha próteses para snowboard. Acabei encontrando um outro amputado que usava um tipo diferente de prótese, e ele me apresentou à empresa que as fabricava. Ela não era feita para snowboard, mas era própria para ser usada em esportes. Eu escrevi uma carta para eles dizendo “Não sei se uma pessoa sem ambas as pernas pode praticar snowboard, mas, se for possível, eu serei a pessoa a descobrir como?. Minha obsessão foi crucial para levar o esporte para os Jogos. Acho que não estariam lá se nada disso tivesse acontecido.
Sendo uma atleta paralímpica, como foi participar da abertura dos Jogos do Rio, ano passado?
Incrível. Poder representar o espírito da Paralimpíada e exibir nossas habilidades, as habilidades dos atletas que competiriam, foi uma honra. E como eu mesma sou uma paratleta, sabia o que eles iriam passar, por isso fiquei tão emocionada. Eles passaram anos se preparando para estar lá, e cá estava eu, representando-os no começo do evento. Eu precisei reunir todos os tipos de experiência que já tive ? desde as competições paralímpicas das quais já participei, até minha passagem pelo ?Dancing With the Stars?. Tudo isso teve um papel importante para dançar em frente a tantas pessoas e poder aguentar a pressão.
Foi parecido com o que sentiu ao desfilar na Unidos da Tijuca?
De certa forma sim. Eu sabia que muita gente assistiria pela televisão e pessoalmente, essa parte foi parecida. O diferente foi que, quando dancei na Paralimpíada, foi um evento global que aconteceu no Brasil. Dessa vez, eu pude participar de um desfile muito tradicional para os brasileiros, realmente entrei no mundo de vocês. A Olimpíada foi um evento extraordinário, mas não é tradicionalmente brasileiro. O carnaval, sim.
Você agora pensa no Brasil como uma segunda casa?
Sim! Principalmente depois do desfile. As pessoas daqui me acolheram tão bem, elas têm um coração tão gentil. Eu nunca imaginaria que, depois de perder as pernas, dançaria no carnaval do Brasil e teria tantos cariocas me incentivando, me apoiando e apoiando minhas diferenças físicas e minha deficiência. Realmente parece uma segunda casa.