SÃO PAULO ? Principal nome do teatro do Líbano na atualidade, o autor e diretor Rabih Mroué recebeu da MITsp um convite para apresentar uma mostra com parte significativa de seu trabalho recente. Desde terça-feira, o artista libanês tem ocupado o palco do Sesc Vila Mariana e apresentará até domingo um conjunto de três diferentes criações: “Tão pouco tempo”, um solo interpretado por sua mulher, Lina Majdalanie; “Revoluções em pixels”, em que o próprio autor está em cena; e “Cavalgando nuvens”, que estreia nesta sexta-feira e encerra no domingo a passagem de Mroué por São Paulo.
Em comum entre elas, uma concepção cênica minimalista, enxuta, mas que traz para o centro da cena dispositivos de vídeo e fotográficos para enquadrar e enfrentar tabus culturais, dilemas filosóficos e éticos relacionados a alguns dos mais urgentes assuntos contemporâneos: a construção e a idealização do mártir dentro da cultura muçulmana, o embate entre cidadãos ativistas e as forças do regime político e midiático oficial na Síria, assim como as sequelas sofridas por indivíduos violentados pelas guerras civis no Líbano, entre os quais o seu próprio irmão, Yasser Mroué, o protagonista de “Cavalgando nuvens”, que é considerado um dos seus mais contundentes trabalhos.
Entre terça e quinta-feira você apresentou duas obras que analisam diferentes formas de construção de imagens e de impressões sobre pessoas que vivenciam situações-limite, na fronteira entre a vida e a morte. Em “Tão pouco tempo” e em “Revolução em pixels” você observa a tendência humana de preencher, com tortas suposições, lacunas de situações cujas informações são incompletas. E como sempre o que temos são versões incompletas de histórias e da História, nos deixa como resultado a inquietação. Nesse sentido, o que o seu teatro propõe ou busca observar?
Acho que o teatro e as artes, de um modo geral, são lugares onde é possível tornar as coisas mais complexas, tratá-las de um modo diferente de outros meios convencionais. As artes não devem simplificar ou fazer reduções sobre o que está acontecendo do lado de fora do teatro, numa guerra, no contexto político e social de um país. É preciso se aproximar e encampar certos temas com o objetivo de torná-los mais complicados, complexos, incompreensíveis em alguma medida, mas, ao mesmo tempo, de modo inteligente, instigante. Um dos intelectuais que respeito, Jalal Toufic, diz que as artes oferecem aos espectadores ou leitores abordagens incompreensíveis sobre certas situações. Pessoalmente, nesse sentido, não acho que a arte deva assumir o papel do ativismo. O teatro e as artes são como a filosofia. Ambas não podem mudar o mundo, mas podem fabricar novas inquietações, questões, perguntas e ideias que podem nos inspirar, estimular a abertura de debates e discussões. Então o teatro, para mim, é uma forma de abrir diálogos e debates sobre qualquer assunto.
O seu trabalho habita a fronteira, indiscernível, entre o real/documental e o campo da ficção. Nas suas peças, ficção e realidade se misturam, e a nossa imaginação, diante de imagens e de vídeos, parece se transformar numa máquina de invenção e de manipulação constante do real. Com que intenções você localiza o seu trabalho justamente nessa zona indistinguível, em vez de tomar a posição de que o que faz é pura ficção, ou ao contrário, um trabalho documental?
Meus trabalhos em teatro, em vídeos e com fotos lida sempre com histórias verdadeiras, mas com certeza não se trata de um teatro documentário, como muitos dizem. E também não é semi-documental como alguns críticos costumam definir.
Para mim o que faço é teatro, e apenas teatro. E o que faço é tentar abrir discussões e debates sobre o sentido e o significado do teatro. É por isso que se alguém define o meu trabalho como “teatro documentário”, perde-se a oportunidade de abrir uma ótima discussão sobre o que é o teatro, ou sobre como pode ser o teatro hoje.
Quando uso vídeos, câmeras, telas e fotos no meu trabalho, com certeza isso não acontece porque é uma moda, ou por um interesse menor por esses materiais, não. Faço isso porque é essencial para o meu trabalho. O vídeo ou as fotos são fundamentais para essas peças. São elementos que, se forem retirados da cena, a obra perderia muitos dos seus sentidos. Lido com fotos e vídeos e os torno os principais protagonistas do meu trabalho.
Em “Cavalgando…”, ao lado dos vídeos e fotos há a presença do seu irmão, e da história dele, que foi ferido na guerra civil do Líbano e perdeu, a partir de então, a capacidade de falar. O que o levou a criar esse trabalho?
“Cavalgando…” é uma peça de teatro, que é interpretada pelo meu irmão, Yasser, mas, na verdade, quando ele está em cena ele interpreta o papel de alguém que tem o mesmo nome que ele, e que conta uma história que se parece muito com a sua própria história. Então é uma história baseada em fatos reais, mas ficção e realidade se misturam. Mas além disso é uma peça sobre representação. Sobre o que significa um ator estar conciliado com o seu personagem, o que significa um ator fazer realmente um papel, sabendo que, ao mesmo tempo, ele está jogando, é uma ficção. E também é uma história sobre como é possível aprender o que é uma representação.
Em que sentido?
O que aconteceu é que o meu irmão sofreu ferimentos durante a guerra. Esses ferimentos o deixaram afásico, ou seja, ele perdeu a capacidade de falar, de produzir sons com a boca, mas além disso ele perdeu também a compreensão do que significa a representação, ou seja, a capacidade de conseguir reconhecer alguém numa foto, numa imagem, incluindo ele mesmo. Ele teve que aprender a reconhecer a si mesmo em fotos. Ele teve que aprender tudo de novo, do zero. Então de fato, essa não é uma peça sobre a guerra do Líbano, ou sobre a minha relação com o meu irmão. Talvez seja uma peça sobre a linguagem, sobre alguém que, durante a adolescência, é ferido, perde a capacidade de falar e precisa aprender tudo do zero.
Você associa a perda da capacidade de falar com “começar do zero”, como alguém que perde tudo. Por quê?
Mas por que associo a perda da capacidade de falar com a ideia de “perder tudo”, ou recomeçar do zero? Porque, para mim, a fala, a linguagem, produzir uma linguagem a partir da organização de palavras é o que nos distingue de todos os outros animais. É precisamente pelo mundo das palavras, através delas, que nós podemos formular ideias abstratas, escrever poesia, criar metáforas, elaborar perguntas, e tudo isso é o que nos transforma em animais políticos.
É essa relação com a palavra o principal elemento que nos caracteriza enquanto gênero animal, enquanto espécie. Mais do que ser capaz de expressar emoções, sentimentos e necessidades, o que outros animais também podem fazer, nós podemos ainda mais: fazer perguntas, criar metáforas e formular ideias abstratas como justiça, injustiça e democracia. E é isso, na verdade, o que me interessa nessa peça.
Porque durante as guerras as pessoas vivem sob um estado de emergência, e dentro desse estado estamos a todo tempo correndo atrás de comida, de segurança, abrigo… Ou seja, o que acontece é que, aos poucos, nós vamos perdendo nossas condições enquanto seres humanos. Nessa corrida pela sobrevivência, nós perdemos as condições de expressar nossas ideias, nossas opiniões, nossas dúvidas e questões, nossas almas. E esse é o principal assunto contido nessa peça.
Em “Revoluções em pixels” você também se aproxima do contexto da guerra, mas nesse caso, na Síria. Se “Cavalgando…” não é uma peça sobre a guerra, mas sobre seus efeitos num indivíduo, em “Revolução…” qual era o seu objetivo?
“Revoluções em pixels” é diferente de “Cavalgando…” no sentido de que ela não é uma peça de teatro, mas sim uma palestra, não acadêmica, que usa esse formato de palestra, e alguns expedientes acadêmicos, como citações e notas de rodapé, em busca de analisar alguns vídeos gravados por manifestantes e ativistas sírios, e que foram disponibilizados na internet no primeiro dia da revolução iniciada na Síria em 2011. Até ali parecia haver na Síria um movimento pacífico, mas as reações do regime passaram a ser muito violentas, e diversas pequenas câmeras capturaram diferentes situações de violência ocorridas nesse dia.
Tento analisar esses vídeos, e prestar atenção em alguns aspectos, como por exemplo o fato de os manifestantes gravarem seus vídeos com seus celulares, em baixa qualidade técnica, sem câmeras profissionais, e sem qualquer segurança e estabilidade, em diversos sentidos. Então o que faço nesse trabalho é analisar essas diferentes formas de registro, e tentar entender o porquê dessas diferentes formas de se registrar os protestos. A forma dos manifestantes e a forma da mídia oficial, do Estado.
Apesar de suas diferenças, o que essas três obras têm em comum, de que modo elas, juntas, revelam elementos significativos do seu trabalho?
Todas elas lidam com a mesma questão: a representação. Em diferentes níveis. Falo de representação no teatro, a representação de um cidadão por alguém, a representação de indivíduos e de suas individualidades, porque num país como o Líbano a questão do indivíduo não é discutida ou tocada como deveria. Geralmente podemos falar sobre isso com maior liberdade em países que respeitam os seres humanos, as suas constituições e suas leis.
Então nestes trabalhos reflito, também, sobre certos discursos comunitários, patrióticos, tentando compreender seus efeitos em uma comunidade, em seus habitantes, em suas singularidades. É uma investigação sobre como estes discursos comunitários podem aniquilar ou roubar as identidades das pessoas, suas vozes individuais, como é possível apagar individualidades em prol de uma unidade coletiva.
Cotidiano
Libanês Rabih Mroué investiga imagens de guerra e suas vítimas
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