Esportes

Na classe T11, a versão mais cruel do salto em distância da Paralimpíada

O salto em distância classe T11 (para atletas totalmente cegos) é a versão mais cruel da disciplina. Diferentemente da maioria dos esportes para cegos, os saltadores correm sem contato físico com os guias, orientados apenas pelo som de alguém que, na outra extremidade da pista, reforçará o momento certo para que o atleta salte, já próximo da tábua de impulsão. A consequência deste nível de dificuldade é que, muitas vezes, os atletas ou perdem o traçado e saem da pista, ou saltam já na areia, ou evitam acelerar: em qualquer das três situações, o resultado é humor involuntário. É preciso desenvolver um senso apurado de orientação e confiar no guia.

Na primeira das seis rodadas da final, fica claro por que Silvânia Costa de Oliveira, aos 29 anos, é a atual campeã e recordista mundial da prova, com 5,46m: no primeiro salto, registra 4,66m, uma marca que sete de nove adversárias não conseguirão ultrapassar. Vem o segundo salto, e a natural de Três Lagoas-MS alcança 4,78m. Interiormente, porém, Silvânia não está satisfeita, como admitirá depois.

Silvânia Costa

A torcida não percebe, por motivos diversos. Como a prova é entrecortada por cerimônias de premiação, e a brasileira está muito na frente, as atenções se dispersam entre os muitos eventos naquela manhã tímida e nublada, com eliminatórias de 4x400m para cadeirantes, arremesso de peso F40 (executado por anões e vencido por um iraquiano) e um interminável arremesso de clava para cadeirantes na gaiola do atletismo ? os três eventos sem qualquer brasileiro.

Fora do campo e da pista, os atletas à paisana recebem o carinho do cariocas: dois esportistas cadeirantes sérvios que assistem ao arremesso de clava divertem-se com o momento de súbita fama e atendem pedidos de fotos das crianças com sorrisos largos. Caminhando no anel externo da arquibancada, o venezuelano Omar Monterola, prata nos 400m T37, é cercado por um enxame de alunos de alguns dos muitos colégios que visitam os Jogos e tiram muitas fotos com seu prêmio. Não a medalha, que elas não ligam para isso: elas preferem a exclusiva versão do mascote Tom, com cabelos prateados.

Quem observa o salto em distância com mais atenção, no entanto, nota que a atmosfera é pesada. Não são poucas as atletas que se perdem na dificuldade intrínseca da prova, sem sequer terminar o salto. E conclui-se que o esporte paralímpico não é uma versão facilitada de práticas célebres, e sim o jogo elevado ao very hard. As marcas ficam abaixo dos 7m que dão pódios em Olimpíada? Sim, porque lá é mais fácil.

201609161535371293_AFP.jpg Algumas saltadoras, como a japonesa Chiaki Takada e a italiana Arjola Dedaj, não se encontram na pista e saem pelo lado repetidas vezes. Por seu turno, a sueca Viktoria Karlsson conjuga o verbo refugar: quando percebe que algo está errado na corrida, para e volta à cabeceira da pista antes de completar o salto: a regra permite, se dentro do tempo pré-determinado. Um ritual aflitivo, sobretudo quando acontece com a caçula das três brasileiras na prova.

A cada tentativa, Thalita Simplício, 19 anos, enfrenta suas sérias dificuldades com a linha reta: chega a sair da pista e saltar em curva para voltar à caixa de aterrissagem. Em rodada seguinte, nem chega a decolar, sendo freada pela areia. Parece ensaiar experiências com vistas a uma Paralimpíada futura, e o telão flagra a preocupação com que seu guia tenta lhe passar orientações, a cada erro cometido. Já a chinesa Jia Juntingxian corre de forma pendular, abrindo bem as pernas a cada passo.

SURGE UM DUELO

201609161301376986_RTS.jpgSe a aceleração de Jia nem sempre é suficiente, ao menos deixa claro que a chinesa era a principal ameaça para a terceira brasileira, Lorena Spoladore, que pleiteia um degrau no pódio logo abaixo de Silvânia e melhora de 4,71m para 4,76m na quarta rodada. Lorena já tinha um bronze nos Jogos, no revezamento 4x100m, conquistado ao lado de Thalita Simplício. O ouro no salto, que não é sua especialidade, está fora de suas ambições. Mas pode engordar a conta de medalhas do Comitê Paralímpico Brasileiro.

É quando surge uma ameaça a Silvânia: a marfinense Fatimata Brigitte Diasso, 26 anos, também mais especialista em velocidade que em salto. Com uma corrida sólida, explosão e ótima impulsão, a africana salta 4,89m na quarta rodada, o melhor salto de sua vida, e só não silencia o Engenhão porque o estádio já está comportadamente calado, como manda o figurino em provas para cegos. Ao contrário, depois desse salto, é a vez de Silvânia, e a torcida faz questão de gritar ?Brasil, Brasil? para incentivar a atleta a impedir que o Engenhão atravesse o terceiro dia sem ouros para o país.

Efeito da pressão, é também nesta quarta rodada que a sul-mato-grossense queima o salto, passando da tábua de impulsão. Neste momento, a Paralimpíada fareja uma reprise. Afinal, no dia 8 de setembro, seu irmão Ricardo, cego como ela, executou o melhor salto de sua vida para deixar um recordista mundial, o americano Lex Gilette, em segundo plano.

Toda a carreira de Silvânia como atleta de elite é ligada a Ricardo. Foi dele a ideia de levar a irmã mais nova para o salto em distância, que ele já praticava. Seria uma forma de aproveitar melhor as ambições atléticas de Silvânia, em vez de deixá-la se gastar em provas amadoras de rua, nas quais ganhava algumas centenas de reais para sustentar a filha, Letícia, gerada ainda na adolescência pobre.

Dobradinha brasileira no salto em distância

Os dois irmãos são unidos pela doença de Stargardt, uma degeneração congênita que consumiu as visões de ambos ? e de um terceiro irmão ? antes mesmo de chegarem à vida adulta. Mas Ricardo já tem seu ouro olímpico. Agora é só mais um torcedor no Engenhão, provavelmente o que mais acredita que a irmã reverterá o resultado contra a marfinense.

Na quinta rodada, Diasso marca 4,69m ? é menos que os 4,71m com que Lorena Spoladore se segura na terceira colocação. Esbelta, a marfinense parece ter dado o máximo. A africana conta os minutos debaixo da venda dos olhos, conversa com o guia, torce. Só Silvânia melhora na penúltima rodada, encarrilando corrida e salto para 4,82m. Melhor, mas insuficiente.

A RODADA FINAL

201609161357272831.jpgFaltam sete centímetros ? a metade de uma caneta Bic. E falta uma rodada inteira: todas as dez atletas repetirão seus saltos, mas restam apenas duas ?finais?: uma pelo ouro, entre Diasso e Silvânia, e outra pelo bronze, Jia x Lorena.

Na última rodada, Lorena queima o salto, e Jia não a supera. Com o bronze garantido, o estádio inteiro se dedica ao último confronto. Silêncio.

A líder Diasso corre para seu último salto. Dissemos anteriormente que a especialidade dela são as provas de velocidade, 100m e 200m. Mas a verdade é que a africana é consistente: não queima os saltos e mantém-se dentro da média, com 4,78m. Comemora com o guia, pega a bandeira da Costa do Marfim. É a vez de Silvânia.

A corrida é perfeita, e o salto, limpo. O diabo é que os juízes levam alguns segundos até liberarem a exibição da marca obtida nos cronômetros próximos à pista ? o telão nada explica. É quando o Engenhão explode: 4 metros e NOVENTA e oito centímetros. Silvânia irrompe em gritos abraçada pela equipe e sai atrás de uma bandeira para dar, enfim, sua volta paralímpica.

? Acho que quem infartou nesta hora foi minha mãe. Entrei na prova nervosa, tanto que não saíram as minhas melhores marcas, e eu me cobro muito. Foi nervoso, e o último salto foi impressionante ? disse Silvânia depois da prova.

Já Ricardo resumiu sua vez de ser um irmão tão próximo e um torcedor que sente sem ver:

? Eu sabia que ela ia conseguir, mas ela me deixou muito inseguro durante a prova. No finalzinho eu acreditei. Pensei: ?Ela veio para saltar e vai saltar”. No meu último salto, eu falei: ?Vou entrar com um tiro certeiro. Ou eu ganho, ou eu ganho?. E ela fez a mesma coisa.