A pandemia do Covid não trouxe apenas uma crise sanitária, com milhares de mortos, mas também uma crise matrimonial: incalculáveis pedidos de divórcio. Hoje direito potestativo, isto é, que independe de requisitos para ser concedido, todavia nem sempre foi assim. Por muito tempo, o casamento foi indissolúvel, por estar intimamente relacionado com a religiosidade e com a noção de sacramento, de modo que apenas a morte seria capaz de separar o casal.
No entanto, a sociedade é mutável, tal qual a proteção jurídica, de modo que os fatos sociais, em constante transformação, levam à modificação das leis e de sua interpretação. No século XX, não só a aristocracia perdeu seu espaço, como também a Igreja, com seus usos e costumes sendo paulatinamente transformados por interesses da nova sociedade que ascendia: empresário-industrial. Nesse contexto, a liberdade, um dos pilares da Revolução Francesa, adentra também nos lares, outrora ungidos pelo fogo sagrado. O Estado cede lugar ao indivíduo para formar não só uma família tradicional, mas um LAR (lugar de amor e respeito).
Embora tenha havido grandes transformações no último século, elas não foram repentinas: a mudança social e cultural é gradual, devido à resistência dos conservadores. Não seria diferente com o casamento e sua dissolução. Na década de 1970, no Brasil, tem-se a regulamentação da separação judicial, conhecida como “desquite”, rompendo paradigmas. Embora o preconceito continuasse arraigado, o direito ao rompimento da sociedade conjugal começava a engatinhar, timidamente, pois essa separação mantinha o vínculo entre o casal, de modo que não era possível contrair novas núpcias.
O próximo passo foi o sistema gradual separação-divórcio, em que era possível a dissolução, agora, do vínculo conjugal, pelo divórcio, permitindo novo enlace matrimonial, desde que houvesse prévia separação judicial, comprovado lapso temporal de separação judicial ou de fato. Além disso, a quebra de qualquer das obrigações legais (fidelidade, sustento, ajuda mútua) levaria ao fim da vida plena em comunhão e deveria ser comprovada para a concessão do divórcio.
Isso porque o culpado era sancionado juridicamente, perdendo inúmeros direitos, como direito ao sobrenome do cônjuge, direito a alimentos e, ainda, direito à guarda dos filhos menores. Era como uma penalidade pela afronta à norma cogente de conduta: ser família matrimonial.
A partir da década de 1990, após a promulgação da atual Constituição Federal, emergem as doutrinas e decisões judiciais sobre um tema pulsante desde meados do século XX, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana enquanto limites intransponíveis do indivíduo, no sentido de promoção da personalidade. Nesse momento, o afeto, enquanto norteador das relações familiares, evidencia o divórcio enquanto direito potestativo e não mais uma chaga. Não há mais o culpado, de modo que se garantem os direitos do(a) “ex”, que tem liberdade para escolher sua felicidade, sem necessidade de comprovação de lapso temporal de separação e sequer culpa.
Ainda que com maior liberdade no campo familiar, os incapazes devem ser protegidos, de modo que havendo filho menor e/ou incapaz, ou estando a mulher grávida, é imprescindível procedimento judicial, bem como quando houver impasses sobre guarda, visita, alimentos ou partilha de bens. Caso contrário, permite-se o divórcio diretamente em cartório, sendo que em ambos os casos faz-se necessária a presença do advogado. O que não pode faltar é maturidade de quem um dia amou perdidamente para dar espaço à felicidade e à liberdade.
Giovanna Back Franco
Advogada e mestre em Ciências Jurídicas
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