Opinião

Os anéis que se foram, os dedos que ficam

A exposição da violência parece remeter quase que invariavelmente à Guernica de Picasso, um retrato de guerra civil, com ênfase de padrões abstratos e desconfortáveis aos olhos. Há um senso de que o ato violento deve atingir a carne, expondo a dor do âmago de quem a vivencia. Por esse motivo, quando o assunto é violência doméstica, o que emerge são as discussões sobre as agressões, especialmente físicas e sexuais.
No entanto, a própria lei expressa que a violência encontra diferentes níveis de aparição. Desde a aparentemente mais sutil até aquela considerada mais grave. São consideradas formas de violência doméstica: a física, a sexual, a psicológica, a moral e a patrimonial, podendo acontecer de forma isolada (raro, pois geralmente há uma crescente de violência) ou concomitante.
As violações aos direitos da vítima abrangem atos contra a integridade física, constrangimento e manipulação, coação e chantagem para obtenção inclusive de atos sexuais sem consentimento, destruição de bens pessoais, exposição da vida íntima, dentre outros, sendo que quaisquer dessas condutas serão consideradas violência doméstica quando cometidas em ambiente familiar ou em relação íntima de afeto contra aquelas que se identificam com o gênero feminino. Por visar à proteção da mulher em qualquer relação doméstica, familiar e íntima de afeto, pode incidir, inclusive, na relação entre pais e filhas.
O intuito da lei não está na discriminação do gênero masculino ou em uma forma de vingança aos homens, sendo que não há razão da existência de uma lei do “João da Penha”, como vulgarmente se ouve. A legislação estabelece mecanismos de proteção dos direitos humanos diante da desigualdade de gênero. Não raro, a norma deverá tratar desigualmente os desiguais em vista de atingir uma situação de paridade quando houver um abismo entre indivíduos. Em uma estrutura patriarcal e de aumentos de crimes em razão do gênero, se faz crucial uma lei pelas mulheres.
Uma forma de violência que pouco se discute é a patrimonial, em que a conduta do agressor destrói pertences da vítima, promove perda de patrimônio, além de dificultar sua independência financeira. Fica velada na medida em que se entrelaçam os aspectos financeiros aos sentimentos, como se fosse falta de amor não investir no companheiro ou permitir que ele administre os bens, afinal homens sempre têm mais tino para os negócios. Uma falácia propagada por tanto tempo e que o próprio Direito permitiu quando considerava a mulher relativamente incapaz e dependente financeiramente do marido.
Em situação de divórcio, quando a falta de amor é escrachada, a violência patrimonial não poupa esforços. Todos os desvios são feitos para deixar a mulher à míngua, afinal de contas como ela ousou expor a violência e colocar fim ao relacionamento de fachada… Aliás, um dos principais fatores para frear as denúncias de qualquer tipo de violência ainda é a dependência financeira, além da emocional, especialmente quando existem filhos oriundos da relação.
O silêncio da vítima apenas prorroga o final inevitável: o encerramento do vínculo, ainda que pela morte (feminicídio). Os anéis se vão, mas os dedos devem permanecer, para colher novas flores pelo caminho. Um pedido de ajuda ou mesmo a denúncia podem ser feitos de forma online, como ocorre pelo projeto Justiceiras (facilmente encontrado no aplicativo Magalu), em que voluntárias dão o suporte necessário para o rompimento do ciclo de violências e o início de uma nova vida. Ninguém disse que seria fácil, mas novos anéis virão…

Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas