Por Daniel Medeiros
Golpe é toda vez que a ordem constitucional é alterada fora das previsões estabelecidas pela própria Constituição. Por exemplo, quando interrompem um mandato, ou fecham o Congresso, ou alteram as atribuições e as prerrogativas do Judiciário, quando modificam o desenho federativo, quando suprimem ou restringem os direitos individuais e/ou coletivos. A tudo isso se chama golpe.
O Brasil é um país pródigo de golpes porque não há uma cultura institucional entre nós. A lei não está acima de todos. Pelo contrário, quase sempre se vê a lei como um obstáculo. Daí a vontade latente de ignorá-la ou alterá-la. E então temos os golpes.
Vamos nos ater aos golpes republicanos. O primeiro, aliás, foi o da proclamação da República, com a deposição do velho imperador, feita por um grupo de militares liderados pelo velho Marechal Deodoro, um monarquista ressentido que virou presidente provisório sem saber direito como era o exercício de um governo republicano. Insatisfeito com as críticas do Congresso, fechou-o. Diante da reação da Marinha, renunciou. Assumiu outro marechal do Exército, Floriano Peixoto que, segundo a Constituição, deveria marcar novas eleições. Que nada! Golpe! Ficou no cargo, assinando como “vice-presidente em exercício” por quase quatro anos.
Outro golpe foi em 1930, quando forças militares lideradas por civis derrubaram o presidente Washington Luís e impediram a posse do presidente eleito Júlio Prestes. O chefe do golpe foi o governador do Rio Grande do Sul – e candidato derrotado nas eleições de 1930 – Getulio Vargas. Como foi vitorioso, chamou o golpe de Revolução e afirmou que o País iniciaria um novo momento de sua história. Por isso que, até hoje, chamamos a república que havia até ali de “República Velha”.
Outra Constituição é elaborada – ao todo tivemos 7 – e Getulio ficou brabo porque não havia previsão de reeleição nem a possibilidade de emendar esse artigo. É o que os constituintes chamam de “cláusula pétrea”. Por isso, a permanência de Getulio no poder exigia apelar, mais uma vez, ao recurso golpista. E, em 10 de novembro de 1937, o Congresso foi novamente fechado e outra Constituição imposta ao País.
Em 1945 foi a volta do bumerangue e Getulio foi forçado a deixar o poder pelos militares, que não queriam mais sua permanência. E um novo recomeço se iniciou. Tudo para trás estava superado. Vida nova, sem mais os atropelos do passado. Muito bem para quem acreditou. Em 1961, Jânio Quadros renuncia após sete meses no cargo e os ministros militares resolvem que o vice João Goulart – que estava na China – não devia assumir sob a alegação de que era “comunista”. Ora, ninguém precisa ter lido uma Constituição para saber que o que está escrito lá é: “se o presidente morrer, renunciar ou for impedido, assume o vice”. Não está escrito “exceto se for comunista”. Golpe!
A saída, marota, foi tentar atender os dois lados: permitir que Jango assumisse, atendendo a Constituição, mas impedi-lo de governar, como exigiam os militares golpistas. E então se estabeleceu o parlamentarismo no Brasil.
Em 1963, um plebiscito devolveu os poderes para João Goulart, mas ele não aguentou mais do que um ano no cargo. Golpe de novo. Afastado por um movimento civil militar com amplo apoio da classe média, empresários, fazendeiros, partidos políticos (os dois maiores, PSD e UDN) e imprensa. Como o movimento foi vitorioso e Jango teve de ir para o exílio, deram o nome, mais uma vez, de Revolução. Um novo país, mais uma vez, começava.
Em 1968, os militares não se aguentavam de vontade de reprimir todo o mundo que discordava deles e baixaram o ato número 5 (os outros atos já tinham instituído uma série de outras arbitrariedades, como o fim dos partidos e das eleições diretas), que fechou o Congresso, restringiu as atribuições do Poder Judiciário e os direitos e as liberdades individuais. Golpe!
Por fim, em agosto de 1969, Costa e Silva, o general presidente do AI-5, fica doente e deixa o poder. O que a Constituição (que já era outra) dizia sobre isso? Que o vice deveria assumir. O vice de Costa e Silva era o mineiro Pedro Aleixo, um civil que apoiava os militares, mas que havia achado o AI-5 um tantinho exagerado. Resultado: os ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica impediram o vice e assumiram no seu lugar. Adivinhem como se chama isso?
Depois de 21 anos de regime militar, há mais de 30 anos tentamos fazer desse país uma democracia. Mas já tivemos dois impedimentos de presidentes eleitos. Golpe?
Daniel Medeiros é mestre e doutor em Educação Histórica pela UFPR