Opinião

Coluna Direito da Família: Deus, salve a Rainha (e seus herdeiros)

Sob o luto da monarca mais longeva da história, surgem inúmeras discussões no âmbito jurídico, especialmente no que diz respeito à chamada sucessão hereditária. Suceder é o ato de sobrevir no local do outro, assumindo o legado daquele que faleceu. Embora a morte extingua a personalidade daquele que morreu, remanescendo direito ao seu nome e imagem, o legado diz respeito principalmente ao aspecto patrimonial.

Sucedem aqueles que o falecido determina por ato de vontade, mediante testamento, ou os que a lei determina, na chamada ordem de vocação hereditária, dispostos em classes preferenciais. Tais classes fundamentam-se na presunção de vontade, baseada em situações familiares e, prioritariamente, consangüíneas.

No que diz respeito aos parentes, como na famosa série de streaming, Round 6, apenas uma classe pode ser vitoriosa e levar o “prêmio”, assumindo o direito fundamental de propriedade daquele que faleceu. O cônjuge, por não ser legalmente definido enquanto parente, mas como consorte (nem sempre com tanta sorte assim), em muitos casos concorre nas mesmas proporções.

Com a morte, necessária se faz a transmissão de um dos direitos mais caros do constructo jurídico moderno: a propriedade (bens móveis, imóveis e títulos – no caso da monarquia). Qualquer transmissão de bens, contudo, traz direitos ao Estado: os chamados impostos. Tal concepção é tão remota quanto à construção da sociedade, datando de milênios antes de Cristo, sendo que os tributos estavam na contrapartida de segurança dada pelo Leviatã (a figura forte do Estado, construída pelo filósofo Thomas Hobbes).

Todavia, embora viva-se a ideologia da igualdade entre as pessoas, não se admitiria pensar que alguém tenha os mesmos direitos que a Coroa Inglesa, afinal de contas, eles foram ungidos de poderes divinos para guiarem o povo inglês (e todas as colônias, por tabela) à prosperidade. Deus, salve a Rainha, a capitã do navio da Grã-Bretanha e de toda a Commonwealth.

Assim, com o falecimento da monarca-mãe, seus filhos e netos foram agraciados com inúmeras propriedades, dentre as quais, jóias, propriedades imobiliárias, além de excentricidades como coleções de selos, de cisnes e de espécies aquáticas, com a benesse de isenção de alguns impostos de transmissão de ativos entre os membros da realeza. Tal regra, que não alcança os não pertencentes à Coroa, fundamenta-se na proteção do patrimônio de eventual pulverização.

No direito brasileiro, há o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) aplicável para as transmissões sucessórias, cobrado pelos estados da federação, que tem alíquota única de 4% sobre o valor da base de cálculo. Dessa forma, com o falecimento de alguém, a transmissão dos bens aos herdeiros se dá de maneira automática em uma massa universal, mas a divisão e a regulamentação dependem do pagamento do imposto, pelos herdeiros. Tributo este que, em inúmeros casos, leva à informalidade da transmissão hereditária e que, em muitos casos, pulveriza o patrimônio das pessoas mais humildes.

É fundamental a proteção ao direito hereditário, que deve se estender para além dos aspectos consanguíneos, visto que o direito familiar se lastreia na afetividade, sem perder, contudo, a segurança jurídica tão cara àquele que deixa o patrimônio. No entanto, mais importante que o legado patrimonial é marca que cada indivíduo imprime naqueles que o cerca e na humanidade. Os bens se dissolvem como areia que escorrem pelas mãos, enquanto a memória dos entes queridos, ainda que fugaz, fundamenta o cerne de cada um.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas