RIO – Na adolescência, Wilson das Neves fazia atletismo (salto à distância e
triplo, corrida de 300m e revezamento) no Vasco da Gama, embora seu coração
fosse flamenguista. Ele saía a pé de São Cristóvão, bairro onde cresceu, até o
Maracanã para ver seu Mengão jogar. No bolso, apenas os cinco cruzeiros da
entrada da geral. Com o tempo, passou de geraldino a arquibaldo. Mas sua última
vez no estádio para uma partida tem tempo: foi em 1978, na final do carioca em
que Rondinelli fez um gol de cabeça contra o Vasco aos 41 minutos da etapa
final, dando o título ao time rubro-negro.
Na noite de sexta-feira, ele voltaria ao Maraca vestido
de terno e chapéu branco, com gravata e detalhes em prata, para se apresentar no
palco de seu Flamengo, na cerimônia de abertura dos Jogos. Tocando um minúsculo
instrumento artesanal de couro com grãos de arroz ? que imita o som das antigas
caixas de fósforo de madeira ?, o baterista encantou telespectadores de todo o
mundo ao lado do pequeno sambista Thawan Lucas da Trindade. O passista mirim,
que seguiu a elegância do parceiro, usando bermudinha e sapatos brancos, deixou
o público de queixo caído com sua ginga. Wilson das Neves tem 80 anos; Thawan,
8, idade do bisneto do músico, João.
Enquanto Thawan mostrava nos pés a que veio, o músico chamava os nossos
deuses do samba. Abertura dos Jogos: a festa
? Foi um momento de reverência à verdadeira história da música popular
brasileira. Hoje, é aquele papo: muitos nem sabem quem foi Donga, João da
Baiana, Wilson Batista… A gente cuida muito dos de fora e esquece os nossos.
Santo de casa não faz milagre. Como sou um dos mais antigos, acho que a ideia
ali foi ?vamos lembrar, vamos ensinar? ? contava o músico na tarde de ontem,
desta vez à vontade de chinelinhos de couro e meias, calça de moletom, uma polo
listrada e o chapéu do Império Serrano na sala de casa, na Ilha do Governador.
Dos 14 nomes evocados ? começando por Cartola e terminando com Ary Barroso,
passando por outros grandes como Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho e Clementina
de Jesus ?, ele só não conheceu, tocou e gravou com Sinhô e Noel Rosa (que
morreu quando tinha um ano). Sobre o espetáculo ter a cara da MPB, diz:
? A música é o nosso CPF!
Wilson e Thawan fizeram apenas dois ensaios antes da cerimônia, quando o
áudio foi gravado. Na hora, foi só ?fazer a mímica?. Wilson diz que o pequeno
?dominou?. E o sambista de 8 anos, morador da Vila Kennedy, na Zona Oeste,
estava, um dia depois do show, todo prosa. Ele mostra logo que é um garoto de
opinião e que conhece seu talento.
? Esse cara sou eu ? respondia ele aos que se diziam admirados com a
quantidade de visualizações, na internet, da cena no Maracanã.
Thawan nasceu com o que Wilson das Neves canta em ?O
samba é meu dom?: ?O samba é meu dom/Aprendi dançar samba, vendo samba de pé no
chão?. Sua família não tem qualquer ligação com o mundo da música, mas, quando
ele era ainda praticamente um bebê, sua avó materna, dona Solimar Ramos de
Andrade, de 56 anos, começou a prestar atenção nos passos da criança. Aos 4 anos, a avó o apresentou ao coreógrafo Marcos
Bandeira, na Quadra do Lira, no Estácio. De lá, o menino não saiu mais. ?Quem é
bom já nasce pronto?, disse Bandeira à família de Thawan, que foi integrado à
ala dos passistas da Escola Mirim Nova Geração Estácio de Sá.
Após ficar sob os holofotes do Maracanã, o pequeno sambista teve outra
missão: tirar fotos com as celebridades que participaram da festa. Difícil,
conta ele, vai ser esquecer daqueles momentos e daquelas pessoas, como a top
Gisele Bündchen.
? Ela que me pediu para tirar uma foto junto comigo ? disse o menino,
empolgado. ? Foi um momento muito bom, fiquei muito feliz e nada nervoso.
Nervosa quem ficou foi dona Solimar. A avó assistiu a tudo de perto e não
conteve as lágrimas. Depois da apresentação, revela ela, Thawan nem parecia ter
protagonizado momento tão extraordinário:
? Assim que me encontrou, ele disse: ?Calma, respira. Estou vivo, estou bem?.
Eu chorava muito. Para ele, tudo aconteceu com muita naturalidade. Chegamos à
casa do coreógrafo, onde dormimos, por volta das 2h. Ele tomou banho, pediu um
copo de leite como sempre faz e dormiu ? afirmou Solimar, ainda surpresa com a
personalidade do neto.
UM MENINO QUE JÁ LIDA COM A FAMA
Thawan já virou uma celebridade: na tarde de sábado, com
o figurino da festa olímpica, ele participava de uma sessão de fotos. O
dançarino conquistou a vaga para sambar ao lado de Wilson das Neves após um
concurso em que competiu com outras cinco crianças, todas maiores que ele. Nos
ensaios, afinou o passo com parceiro dez vezes mais velho:
? Falei para ele: você faz uma reverência para eu poder te cumprimentar,
tirar o chapéu. Foi tudo espontâneo. Não teve negócio de coreografia. Disse
ainda: samba, pode suar à vontade ? lembra o compositor, que também deu seus
passos no palco.
Todos aprendidos com os mais antigos. Sobre as funkeiras Anitta e Ludmilla,
ele não quer ?falar mal?. Mas alfineta:
? Esse tipo de música eu não entendo. O que sei é fazer
meu samba. Com 80 anos, não fica nem legal fazer passinho. Se elas existem,
temos que mostrar, faz parte. É o outro lado do Brasil, só que não é perene. E o
samba fica.
Apesar da pouca idade, Thawan parece já entender o que Wilson quer dizer. O
menino tem um sonho, e agora vai atrás: desfilar pela atual campeã do carnaval
carioca, a Estação Primeira de Mangueira.
? Tomara que Thawan tenha sorte, porque inteligente ele é. Que Deus o proteja
? abençoa o autor dos versos ?O samba é meu dom/Aprendi muito samba com quem
sempre fez/ Samba bom?.