RIO ? Quando o jogador senegalês de vôlei de praia Cherif Younousse Samba começou a subir as escadarias que levam ao Morro da Conceição, no Centro do Rio, não conteve a exclamação: ??Me sinto em casa!??. Não por acaso. O Senegal só se concentra no futebol e, ainda assim, não se faz algo tão grande lá. É muito triste. É o Qatar que toma conta de mim, que me dá estrutura
A convite do GLOBO, ele visitava a região conhecida como Pequena África, onde a herança dos escravos trazidos do continente ainda é preservada por um circuito histórico, um dos pontos turísticos cariocas e local apropriado para um reencontro com as raízes, por ser o principal berço da chegada de africanos ao país.
Apesar de ter lembrado das vielas de Dacar ao percorrer a Zona Portuária, o atleta de 21 anos já não chama a cidade africana de casa desde 2013, quando passou a treinar em Doha, no Qatar. Nesta Olimpíada, são as cores do país árabe que o atleta defenderá.
Além da bandeira, Cherif adotou do povo qatari o inglês com forte sotaque, que troca pelo francês ? sua língua materna ? no dia a dia. Durante os Jogos, vai atuar ao lado do brasileiro Jefferson, também naturalizado qatari. A dupla é comandada pelo técnico brasileiro Pepê.
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Cherif não esconde a decepção com o próprio país, que, segundo ele, precisou deixar devido à falta de estrutura do governo senegalês. Embora Dacar, a capital, fique no litoral, o jovem reclama que seu esporte favorito não tem apoio. O convite para treinar em Doha veio pelo Facebook, quando um olheiro viu um vídeo de uma de suas partidas.
Acabou indo parar num clube onde recebeu estrutura. Para ele, valeu a pena se adaptar à cultura diferente e ao calor quase insuportável: os treinos e partidas são à noite. Durante o dia, com temperaturas de até 50 graus, ar-condicionado é item obrigatório.
? O Senegal só se concentra no futebol e, ainda assim, não se faz algo tão grande lá. É muito triste ? contou o senegalês. ? É o Qatar que toma conta de mim, que me dá estrutura. Conheça todos os esportes olímpicos da Rio-2016
A paixão pelo vôlei de praia começou cedo. Aos 8 anos de idade, o pequeno Cherif já ensaiava seus primeiros saques. Ele não sabe bem explicar de onde saiu a paixão, apenas sabe que gosta do que faz. Para seguir a trilha do esporte, precisou convencer a família: a mãe é arquiteta, e o pai, mecânico. Mas Cherif quis traçar seu próprio caminho.
Pela primeira vez em uma Olimpíada, o jogador, que já tinha passado pelo Rio para um campeonato, tem vivido dias de estrela. No início da semana, durante a visita ao Centro ? em que estava vestido com o uniforme oficial da delegação qatari ?, o atleta de 1,94m de altura precisou parar diversas vezes para posar para fotos com brasileiros que já estavam no clima olímpico.
Mais uma vez, ele ressaltou a falta de incentivo ao seu esporte no Senegal:
? Lá, talvez só 2% das pessoas saibam quem eu sou.
A visita à Pequena África, no entanto, pareceu suspender o ressentimento com a terra natal. Já na subida pela Pedra do Sal, Cherif se lembrou das semelhanças com seu país de origem. Mesmo fora do circuito histórico, uma parada estratégica trouxe, literalmente, o gosto de sua adolescência no Senegal: uma barra de pé de moleque, quitute comum em Dacar, que ele não experimentava há cinco anos.
? No Senegal, temos construções parecidas com essa aqui também ? observou o atleta, que registrou quase toda a visita no Snapchat (Cherif não desgruda do smartphone).
PEDRA DO SAL
O circuito histórico que Cherif percorreu compreende marcos importantes, que preservam traços deixados pela passagem dos africanos. O passeio inclui a Pedra do Sal, famoso por ser ponto de encontro e celebração da região, e segue para o Morro da Conceição, de onde se tem uma bela vista do Morro da Providência e de parte do Centro antigo. Outro destaque é o Cais do Valongo, um dos pontos de chegada dos negros à cidade.
Segundo a historiadora Monica Lima, coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos da UFRJ (LeÁfrica), aproximadamente 40% dos 12 milhões de escravos traficados para as Américas tiveram o Brasil como destino. Desse grupo, cerca de 60% desembarcou no Rio. De acordo com a especialista, o Senegal teve papel de pouco destaque nesse processo, mas há traços de senegaleses na história da cidade, já que, no início do período de escravidão, parte das rotas vinha daquele país.
? Essa herança africana é parte indissociável da nossa história. O Brasil foi o mais importante ponto de tráfico negreiro ? afirmou a pesquisadora.
A visita de Cherif passou ainda pelo Cemitério dos Pretos Novos, uma casa transformada em sítio arqueológico e museu onde são preservadas ossadas de escravos africanos. Merced Guimarães, presidente do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), conta que quase não recebe estrangeiros e que o senegalês foi o primeiro atleta a passar pelo local. Ela destacou a importância de preservar a memória para estimular a luta por igualdade.
? A memória da sua história é uma ferramenta de luta. Você vai lutar pelo quê, se você não sabe nem quem você é? São os ancestrais que vão ensinar ao negro que caminho trilhar no seu futuro ? disse Merced.
Além da semelhança das construções e da geografia, Cherif comparou a Pequena África ao local dedicado à memória dos negros escravizados em seu país, a Casa dos Escravos, localizada na Ilha de Gorée. O memorial é dedicado aos africanos que deixavam o continente e é famoso por sua Porta do Não Retorno, por onde os escravos passavam ? para não mais voltar. Em 2005, o local foi visitado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pediu perdão aos negros africanos pelo período de escravidão no Brasil.
VISITAS À FAMÍLIA
Na escola, Cherif se recorda de ter estudado sobre o assunto pelo menos quatro anos seguidos. Ao chegar, finalmente, ao Cais do Valongo, classificou o período como um crime:
? Não é algo que você consiga manter no coração. Tudo isso é um crime. É algo sobre o qual não se pode fazer justiça.
Embora naturalizado, Cherif cultiva suas raízes na terra natal. Nas férias, volta para o Senegal para visitar a família ? além dos pais, tem duas irmãs e dois irmãos que ainda moram em Dacar. E conta com orgulho ser o único africano negro disputando o torneio olímpico de vôlei de praia.
? Tenho muito orgulho, quero mostrar que a África é capaz de produzir bons atletas ? afirmou.
O país de Cherif faz parte de um grupo que enfrenta desafios dentro e fora do esporte. Nos Jogos do Rio, as nações da África Subsaariana, com exceção da África do Sul, serão representadas por 572 atletas. Para se ter uma ideia, a delegação dos EUA tem 550 integrantes. Dos 47 países da região, 39 vieram à cidade com menos de 15 atletas. As potências são o Quênia (80 atletas) e a Nigéria (81). O Senegal tem 22.