Mulheres brancas sabem enterrar. Do alto de seus 1,96m, a americana Elena Delle Done, jogadora do Chicago Sky e atual MVP da liga de basquete feminino dos EUA, é a prova disso. Ela não tem dificuldades em alcançar o aro – até vestida de Batman a ala-pivô, ela cravou a bola na cesta -, porém, com a média de altura de 1,80m da WNBA, a tarefa de alcançar os 3,04m está longe de ser simples. Voz ativa no esporte, a nova estrela da seleção americana, que tenta o hexacampeonato olímpico, sugeriu, recentemente, baixar o aro uns 30 centímetros. Tudo para tornar a categoria tão atraente e rentável quanto a NBA – a altura é igual para ambos.
No que depender da americana, de origem italiana, a glória do basquete feminino fora das quadras – afinal, no campo a hegemonia olímpica das mulheres é maior que a dos homens, atuais bicampeões – está na trilha certa. Ela aceita o papel de “o rosto da WNBA” de bom grado, mas não se considera a única. Aos 26 anos, surge como garota-propaganda de grandes marcas esportivas, como Nike e Gatorade, estampa capas de revistas locais, como a Chicago, e mundiais, como a Vogue, e vê a conta bancária crescer com o sucesso. Atualmente, ganha algo em torno de US$ 500 mil anuais, enquanto a média é de US$ 75 mil. Entre os homens, esse valor é oito vezes maior, ou US$ 4 milhões anuais.
Delle Done, enterrada de batgirl
– Eu realmente estou interessada discutir tudo o que pode ser feito para melhorar e fazer o esporte crescer. Eu acho que baixar o aro poderia ser uma forma de trazer emoção extra ao basquete e aumentar a audiência – disse Delle Done, em entrevista por e-mail ao GLOBO.
Porém, ela ainda não conquistou um título relevante pelo clube, que caiu nas semifinais dos playoffs na temporada passada, ou pela seleção principal. Ficou fora do Mundial de Basquete de 2014 por causa de uma lesão, e os Jogos do Rio serão a primeira grande competição internacional.
– O basquete americano sempre se renova e surgem novas estrelas. O foco hoje é a Delle Done, mas vamos ver se ela vai estar no nível de outras grandes estrelas americanas, como a Diana Taurasi. Vamos ver se não é só marketing – disse o técnico da seleção brasileira Antônio Carlos Barboza.
Delle Done não está alheia às críticas. Pelo contrário, responde pessoalmente às ofensas nas redes sociais. A maioria duvida do talento da jogadora de aparência padrão modelo. Ou destila machismo com comentários de que as mulheres deviam voltar à cozinha. Da mesma forma que luta pelo crescimento da liga americana, ela milita na causa feminista. É justamente essa visão deturpada do esporte, e do mundo, que passa pelas piadas de internet a assédio moral e sexual, que ela combate em campanhas e entrevistas.
Recentemente, rebateu o comentário, nas redes sociais, do ex-jogador da NBA Gilbert Arenas, que afirmou que a WNBA teria melhores índices de audiência se as jogadoras atuassem de tangas.
ATLETA EMPODERADA
“Mulheres não foram colocadas no mundo apenas para os homens olharem. Nós somos pessoas. Nós temos um objetivo. Somos modelos principais. Eu sou uma atleta em primeiro lugar” #byegilbert, respondeu no Twitter.
-Para mim, ser feminista significa ser a favor da mulher e levar as mulhesres a serem reconhecidas como seres humanos com os mesmos direitos de qualquer outra pessoa. As mulheres enfrentam muitas questões em todo o mundo. Eu acho que temos a responsabilidade de ajudar e melhorar essa situação de muitas formas, grandes ou pequenas – disse a atleta, cujo sobrenome italiano pode ser traduzido como “Das Mulheres”, mas que não assumiu seu voto para presidência (Hillary ou Trump), mas não foge quando o assunto é política americana. – É um tempo interessante no meu país. Nós estamos vendo a culminação de muitas questões. Eu tenho sorte por poder viajar e conhecer pessoas de outros países e culturas, e ouvir os pensamentos e a perspectiva deles sobre o que está acontecendo aqui agora.
As estatísticas, tão preciosas no basquete, e não as capas de revistas, estão a favor dela. Desde o “high school”, Elena surgiu com potencial enorme. No fim do ensino médio, as propostas das universidades pipocaram no seu e-mail. Inclusive uma do seu atual técnico Pokey Chatman, na época treinador do Lousiana State Uinversity. Portanto, escolheu o Blue Hens, da Universidade de Delaware, seu estado natal. Lá, foi a caloura e a jogadora do ano de 2010 e chegou a marcar 54 pontos num único jogo. A altura aliada à habilidade e versatilidade, algo raro, encantaram os fãs e donos do esporte.
– Eu atribuo a habilidade de Elena ao início precoce no esporte, trabalhando suas habilidades e as aperfeiçoando desde cedo. À medida que ela vai ficando mais velha, se esquecem disso. Acham que ela nasceu e já era uma jogadora incrível. Ela trabalhou duro no início até ter um momento de esgotamento, porque ela queria ser a melhor – explica Chatman.
VOLTA POR CIMA
Por pouco, toda essa história não ficou pelo caminho. Fosse pelo esgotamento citado pelo técnico ou por uma doença misteriosa. Aos 18 anos, Delle Done recebeu o convite da Universidade de Connecticut, considerada a meca do basquete feminino universitário. Ela fora escolhida pelo próprio Geno Auriemma, atual técnico da seleção feminina. Não havia como recusar e foi. Mas bastaram dois dias no programa de verão da faculdade – na realidade, a pressão já vinha de antes – para jogar tudo ao alto.
Voltou para casa, em Wilmington, ficou ainda mais próxima da irmã mais velha Lizzie, portadora de paralisia cerebral, e esqueceu o basquete. Sequer assistia. Viveu uma vida de universitária normal, entrou para o time de vôlei – ganhou a caloura do ano – e seguiu em frente até abril do ano seguinte.
– Minha grande heroína é a Lizzie, que é surda e cega, tem paralisia cerebral e autismo. Ela me inspira todo dia e coloca qualquer dificuldade que possa surgir em perspectiva. Ela encontra tantos obstáculos e dificuldades e nada a para – conta.
No seu retorno ao basquete, após muita reflexão, decidiu permanecer em Delaware. Lá, calou todas as dúvidas sobre sua performance e foi considerada a melhor jogadora do ano. Até que sintomas inesperados a detiveram: exaustão, fadiga muscular, dor. Perdeu quase 15 quilos até descobrir que tinha Doença de Lyme – infecção bacteriana causada por carrapatos.
Entre idas e vindas da doença, foi escolhida na segunda rodada do draft de 2013 pelo Chicago Sky, onde vem encantando o mundo com seu basquete moderno e eficiente. Em três temporadas, foi premiada como caloura do ano, escolhida para o All-Stars Game e MVP no ano passado.
– O crescimento do Chicago nos primeiros três anos dela definitivamente está alinhado com a chegada dela – afirma Chaptman.
– Ela é versátil, muito forte e tem facilidade de jogar em várias posições – diz a brasileira Clarissa dos Santos, que joga no Chicago Sky.
Graças à leveza com que aprendeu a levar a vida, o basquete virou apenas prazer. Entre muitos que tem na vida, como ficar ao lado da dogue alemã Wrigley, de 3 anos, e a marcenaria – junto com duas amigas fabricam mesas vendidas pela internet. Agora, o resto do mundo terá a chance de vê-la em ação a partir de agosto no Rio.
– A oportunidade de representar os Estados Unidos nos Jogos é sonho de uma vida. E eu tenho aprendido tanto sobre o Rio e o Brasil desde que soube que estaria nas Olimpíadas… Estou ansiosa para experimentar o que o Brasil tem a oferecer – diz Delle Done, que teve o primeiro contato com o Brasil por meio das jogadores Erika dos Anjos e Clarissa dos Santos, que atuam com ela, mas vai ficar em um navio, na Zona Portuára, bem longe da Vila Olímpica.